terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Perdida no tempo... A Casa de Fresco dos Sanches de Baena

INTRODUÇÃO
A preocupação com o Património Cultural constitui hoje um tema de discussão muito abrangente, que tem assumido uma preponderância cada vez mais significativa na designada economia global.
É possível rentabilizar o Património? Encontrar soluções de equilíbrio que permitam a conservação de espaços com valor patrimonial e a sua necessária fruição por parte de públicos cada vez mais exigentes e críticos parece ser o desígnio dos agentes com responsabilidade nesta matéria.
O debate dos temas ligados ao Património é cada vez mais mediático, absorvendo as atenções dos discursos de inúmeros quadrantes da nossa sociedade (educativo, comunicação social, político, etc.), assistindo-se, também por isso, a uma crescente consciencialização de que a todos incumbe a protecção e divulgação dos bens de valor patrimonial. Esta consciencialização deve ser particularmente estimulada em Vila Viçosa, pelo que se deve fomentar um interesse e uma preocupação cada vez maiores pelo desenvolvimento de acções conducentes à salvaguarda do património.
A herança cultural necessita cada vez de ser encarada como um potencial pólo de desenvolvimento económico, de acordo com uma estratégia de preservação conjugada com a possibilidade de usufruto desse legado por parte dos diferentes segmentos da população.
Para que esta missão possa ser desenvolvida de acordo com boas práticas de gestão, torna-se necessário que os bens patrimoniais em avançado estado de degradação possam ser alvo de intervenções que permitam a sua reabilitação e que, a partir desse momento, sejam estabelecidas políticas objectivas por parte das diferentes tutelas para potenciar a sua rentabilização. Devem ser  criadas metodologias de conservação dinâmica de património, preservando-o de forma a respeitar a sua evolução e interpretando-o com uma visão alargada e transversal.
É urgente que a sociedade civil encare o Património como um eixo vital para o desenvolvimento, através de acções de valorização e consciencialização e creio que é esse o caminho a seguir. É vital que sejam definidos planos concretos em termos de desenvolvimento sustentável local, de acordo com as referências identitárias para da região. A criação de plataformas de diálogo e de parcerias entre as diferentes tutelas e agentes culturais terá como consequência directa a implementação de medidas e soluções concretas para a preservação do património colectivo.
Desde as últimas décadas do século XX até ao presente, a par da extensão do conceito de património, estamos perante um notável incremento de projectos de reutilização, com a atribuição, ao património, de novos usos, tendo por paradigma a sua utilidade social, com a emergência de uma nova economia e a conceptualização e experimentação de novos modelos de gestão do património.
Em consequência do alargamento da acção e da influência das diversas tipologias de património cultural, não só se conquistam novos públicos, como se desenham e rapidamente se vêem evoluir novos percursos de envolvimento das pessoas e das comunidade(s) com o património, dando lugar a crescentes exigências de ordem política e também de ordem técnica, no que concerne a sua protecção e a sua valorização.
De facto, só com reais preocupações de gestão, de manutenção e de entradas de receitas se poderá abandonar o estado permanente de intervenções de emergência, ou de intervenções para efeitos de inauguração e assim, programar o dia seguinte, o ano seguinte, o triénio seguinte da vida de determinado património. Pensando nas pessoas – todas e não apenas naquelas que trabalham directamente nesse mesmo legado – criando formas de usufruto diversificado e minimamente rentável (tendo em conta o estado embrionário em que ainda nos encontramos neste domínio no nosso país), sendo imaginativos e pedagógicos na forma de dar a conhecer o património, criando uma cultura de responsabilidade local em primeiro lugar e institucional de seguida, poderemos abrir com segurança as portas de mais património e ter a certeza que permanecerão abertas no dia seguinte.
O presente trabalho pretende promover uma reflexão sobre um importante bem patrimonial de Vila Viçosa que corre o sério risco de se perder definitivamente e que deve ser reabilitado, de modo a que seja permitida a sua fruição por parte da comunidade.
A Casa de Fresco do Solar dos Sanches de Baena assume-se como um testemunho de um dos mais importantes períodos históricos de Vila Viçosa e a sua salvaguarda permitirá a uma leitura mais objectiva do impulso artístico verificado neste contexto no decurso do século XVI. Trata-se de um pequeno espaço, situado no centro histórico da localidade, com uma importante e invulgar decoração fresquista, datada da segunda metade do século XVI.
A pintura mural, representando cenas religiosas, políticas ou simplesmente decorativas, através de representações geométricas ou figurativas, constitui um meio de expressão artística com significativa presença em Vila Viçosa.
Creio que a pertinência deste artigo encontra a sua justificação na necessidade de olhar para este elemento patrimonial como um vértice do importante conjunto de pinturas murais existente no novo Parnaso mitológico, segundo a expressão de Morais Sardinha e como um factor determinante para o entendimento da História de Arte em Vila Viçosa.
A Importância da Pintura a Fresco em Vila Viçosa
Ao longo do seu percurso secular pela História, Vila Viçosa foi marcada por diferentes e determinantes fases de crescimento urbanístico que estiveram na génese da formação e consolidação do seu tecido urbano e da construção das diversas peças arquitectónicas de diferentes tipologias construtivas, que o constituem. Vila Viçosa tem subjacente uma visão estratégica e ideológica extremamente complexa. O seu programa de desenvolvimento urbano é estruturado numa malha de edifícios estrategicamente implantados, centrados no Paço Ducal, criando um cenário de representação imponente.
A localidade marcou o desenvolvimento do moderno planeamento urbano português, na medida em que cada edifício do aglomerado foi objecto de atenção nas suas inter-relações com o contexto urbano envolvente. Esta concepção fez de Vila Viçosa o primeiro exemplo de uma verdadeira Vila Ducal de acordo com o preconizado como modelo pela tratadística italiana.
A estrutura da sua malha urbana constitui um excelente exemplo de desenvolvimento de um aglomerado urbano segundo a tipologia preconizada pelos princípios humanistas do Renascimento, adaptada às condições físicas deste contexto.
Embora maioritariamente de imponência relativa, a sua arquitectura monumental, ainda subsistente na actualidade, forma um conjunto coerente e harmonioso, graças à utilização de uma estratégia de construção delineada e estruturada previamente.
O paço e a vila foram desenvolvidos para dotar a Casa de Bragança de um espaço que fosse consentâneo com o prestígio social e o protagonismo da família, tornando-se um exemplo do humanismo renascentista português quer como centro de actividades politicas e diplomáticas, quer pelo seu enquadramento arquitectónico, construtivo, religioso, literário e artístico.
Notáveis exemplares de arquitectura vernácula, militar, senhorial e religiosa constituem testemunhos inequívocos da riqueza histórica e patrimonial que tornam Vila Viçosa um caso ímpar, também a nível da designada pintura a fresco.
A localidade transformou-se num importante centro de cultura, recebendo a Corte Literária dos Duques de Bragança várias personalidades de vulto que ficaram deslumbradas com o luxo e opulência do Palácio Ducal, confirmando-o como único em toda a Península Ibérica. O património construído que se forma em Vila Viçosa data, na sua maioria, da que é considerada a fase de crescimento em  “ensanche” mais decisiva e fulgurante desta Vila, a qual teve início com o arrancar do séc. XVI, ou seja, a fase de expansão correspondente ao período do Renascimento  que se sustenta numa lúcida atitude de planeamento levada a efeito pelos promotores de então .
O dinamismo de construção que então ocorreu, dotou Vila Viçosa de grande parte do seu património construído, com a clara influência dos modelos estéticos e arquitectónicos renascentistas e sob a influência mecenática da família Bragança. De facto, Vila Viçosa revelou desde cedo um crescimento no qual se notam fortes preocupações urbanísticas, cujas directrizes se inserem numa verdadeira lógica de cidade, cuja génese se vislumbra na idealização conceptualizada pelo pensamento humanista do início do período renascentista. Podemos afirmar que a expansão ordenada da vila evidencia uma assinalável capacidade de reconciliar os projectos idealizados e o desenho com as características topográficas do local ou com as pré-existências construídas.
Trata-se de uma resposta específica do urbanismo quinhentista de Vila Viçosa, que revela o exemplo singular desta prática no panorama do urbanismo português do século XVI, onde os espaços civis e religiosos assumem uma importância determinante como eixos de definição do traçado urbano. Aliado a este crescimento urbano muito significativo, assiste-se igualmente a uma crescente preocupação com a decoração erudita destes espaços, a nível da azulejaria e pintura mural.
Quer em azulejo, quer em stucco e em fresco, Vila Viçosa guarda um acervo importantíssimo de temas mitológicos dos séculos XVI e XVII. Estamos perante o resultado directo de um mundo humanista que nesse período histórico era eloquente e requintado de exigências culturais e onde, por isso, a pintura a fresco podia assumir preponderância em termos de componentes pedagógicas de raiz clássica – tanto mitológica como histórico-simbólica, à luz de documentos reunidos na biblioteca e fruto dos contactos que a corte ducal  estabeleceu com o exterior. É neste contexto que a Pintura Maneirista em Vila Viçosa foi inserida e é nesta perspectiva que deve ser analisada.
Embora de qualidade plástica desigual, encontramos neste conjunto, ao nível da temática e dos programas decorativos da pintura, formas que nos demonstram a importância da obra mecenática da Casa de Bragança na vila e como, em plena Contra-Reforma, os artistas que para ela trabalhavam estavam alinhados com o Maneirismo italiano.
Em concreto, constata-se a existência de um ciclo erudito onde se salientam programas históricos-mitológicos e alegorias vetero-testamentárias, a par de ciclos narrativos cristãos, conjugados com o objectivo comum de enaltecer a antiguidade de uma das famílias mais nobres do Reino e de a legitimar em nome da fama, do heroísmo e das virtudes de alguns dos seus membros mais célebres. A temática dos frescos maneiristas de Vila Viçosa é diversificada e reflecte de o ambiente erudito vivido nos séculos XVI e XVII.
Encontramos nas decorações uma união entre a mitologia e a retórica cristã, solução que não é meramente cenográfica, está antes associada a programas políticos, literários e históricos onde os motivos profanos, as representações mitológicas e os grotescos se misturam.
O apogeu criativo da pintura mural neste contexto centra-se, sobretudo, no final da centúria quinhentista e primeira metade do século seguinte com permanências formais e temáticas não verificáveis no restante núcleo nacional. É neste contexto histórico-ideológico e artístico que se realizam intervenções fresquistas em Vila Viçosa da autoria de Francisco de Campos, Giraldo Fernandes do Prado, André Peres e Tomás Luís, as quatro mais destacadas personalidades que se notabilizaram nesta arte.
Existe actualmente em Vila Viçosa um acervo de cerca de 30 obras pictóricas a fresco e a têmpera da época histórica em que o gosto maneirista italiano estava no seu expoente máximo, o que corresponde a toda a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII.
É nesta corte de aldeia transformada em centro humanístico, consciente da sua dimensão autonomista, atestada na simbologia dos programas artísticos, que gravitam os artistas referenciados, que se instalam sob protecção dos duques e passam temporadas em Vila Viçosa. A presença desses e outros intervenientes justificava-se devido ao caudal de trabalho pedido pelas circunstâncias políticas, com visitas de embaixadas a Vila Viçosa, desde a do Cardeal Alexandrino, enviado do Papa Pio V em 1571, à dos jesuítas do Japão em 1584, do vice-rei Cardeal Alberto de Áustria nesse mesmo ano, do próprio Filipe II (I de Portugal), do duque Rainúcio de Parma em 1601, e várias outras presenças de viajantes ilustres que visitam a localidade, que nos permitem imaginar o desenvolvimento que se fomentava à sombra desta corte.
Essas pinturas murais são a parte visível que permanece de um vasto conjunto concebido nos ducados de D. Teodósio I, D. João I, D. Teodósio II e D. João II, os maiores mecenas desta actividade artística.
Analisados no seu conjunto, os frescos do Paço Ducal, das ermidas, Igrejas e ainda os dos solares de Vila Viçosa, constituem uma referência da cultura artística do Maneirismo em Portugal, num ambiente favorável, em termos de opções estéticas e de circulação de modelos, para que esta modalidade pictórica se expandisse em qualidade e em quantidade, servindo como nenhuma outra, os interesses culturais da Casa de Bragança e os seus propósitos de afirmação política. Este conjunto testemunha o brilho desta produção aristocrática que começa a ser paulatinamente desvendado, mostrando os contornos de uma notável corte implantada no coração do Alentejo, actualizada nos programas artísticos que fomenta.
O Solar dos Sanches de Baena
O tema central desta investigação centra-se na Casa de Fresco existente no antigo Solar dos Sanches de Baena. Neste espaço, contíguo ao Convento das Chagas e muito próximo do Paço Ducal, apenas resta, do edifício original, uma chaminé e uma galeria de cinco arcadas e colunelos toscanos que desponta ao longo da actual Rua Doutor Couto Jardim, que faz a ligação ao Terreiro do Paço.
É provável que o seu primeiro proprietário fosse D. Gil Alvares Sanchez, fidalgo espanhol natural de Albuquerque, que se fixou em Vila Viçosa nos alvores do século XVI, ao serviço do Duque D. Jaime e ao qual acompanhou no extenso séquito militar na conquista de Azamor, no Norte de África. Casado com D. Guiomar de Landim, moça de Câmara da Duquesa de Bragança, este casal deu origem a uma ilustre família alentejana, representada, no século XVII pelo célebre Dr. João Sanches de Baena, desembargador do Tribunal da Relação do Porto e do Paço Real, que tomou parte activa no movimento da Restauração de 1640. Desconhece-se a data da alienação do solar por esta família, mas admite-se que os seus representantes o vendessem ou arrendassem a partir do assento da corte de D. João IV em Lisboa.
Em 1660, morava neste espaço Manuel Pegas de Vasconcelos, fidalgo da Casa Real. Ainda era vivo em 1704. Anos depois foi adquirida pelo capitão de ordenanças da Vila, Nicolau de Almeida Valejo de Mariz, cavaleiro do hábito de Cristo, que faleceu em 1753. A casa continuou na posse da família – ocupada, respectivamente, pelo seu filho e neto – o coronel Francisco Cândido de Almeida Valejo de Mariz que, no ano de 1808, casado com D. Epifania Bernarda Teresa Rangel, esteve provido na vila, pelo Município, na junta destinada a suster a rebelião popular contra os franceses. O seu filho, Simão de Almeida Valejo de Mariz, capitão de cavalaria do Regimento de Beja em 1807, também habitou neste local.
Mais tarde, o primitivo edifício tornou-se propriedade do Padre Joaquim Cordeiro Galão, professor do Colégio dos Reis e organista da Capela Real em tempos de D. João VI, monarca que o chamou a Lisboa como mestre de Música e piano das princesas suas filhas.
O imóvel conserva a forma arquitectónica imposta por este proprietário, que não a chegou a habitar, tendo falecido em Lisboa a 29 de Fevereiro de 1838. Os seus herdeiros venderam o edifício no ano de 1857, por 200 000 reis ao lavrador José Cordeiro Vinagre. O edifício é actualmente propriedade da Santa Casa da Misericórdia, onde funciona o Lar de Idosos da Instituição.
A Casa de Fresco/ O Ninfeu
É na antiga horta que encontramos uma estrutura arquitectónica perdida no tempo, que nos serve de testemunho do esplendor artístico que se vivia em Vila Viçosa nos finais do século XVI e início do século XVII.
A Casa de Fresco é um espaço restritíssimo de forma quadrangular, medindo 3.15X2.90 m) e encontra-se há muito em deplorável estado de conservação, por efeito da humidade que procede da mina de água adjacente e devido a intromissões e abandonos de diversa índole. Mesmo assim, constitui-se como um dos mais inesperados testemunhos do Maneirismo calipolense na sua versão mais erudita.
O ninfeu localizado no jardim contém uma rica decoração maneirista de estuque, fresco e embrechado com grande interesse artístico, posto em estado de abandono, onde se assinala o recurso à alegoria mitológica. o qual mostra vestígios de uma decoração integral do primeiro terço do século XVII, da responsabilidade de artistas teodosinos não identificados (nomeadamente o pintor, o estucador e o embrechador),  onde o grotesco pintado se associa aos stucchi e à obra de massa, aos esgrafitos e a um fantasioso embrechado envolvendo o escudo armoriado da família Sanches de Baena.
Este espaço integra uma decoração muito erudita, de ousada concepção aristocrática, e, como refere Vítor Serrão: “(…) é um dos mais inesperados testemunhos do gosto artístico da corte teodosina, marcada pela exploração da temática neoplatónica e pela expressão culta do Maneirismo italianizante de raiz profana(…).
Edificada no nível superior do poço, a casa de fresco é um espaço com varandim sobre a cisterna, sendo a cobertura constituída por abóbada de aresta nervurada. Na sua decoração interligam-se, com grande dinamismo e cuidadosa planificação, estuques relevados, pintura a fresco, embrechados de conchas, pedras e cerâmica, numa linguagem de sabor italiano integrando elementos de grotesco. Os quatro cantos do compartimento são marcados por três cariátides e um atlante de tamanho real, que servem de mísulas às nervuras da abóbada, sendo as paredes rebocadas até ao arranque da mesma. Nos alçados, sobre o varadim de acesso ao poço, encontramos o brasão dos Sanches Baena em estuque, sobrepujado por folhas de acanto e envolvido por composição em cerâmica e conchas.
No alçado em frente à porta de entrada observa-se uma tabela elipsóide envolvida em enrolamentos, com uma representação da história de Diana e Acteon (, baseada numa das gravuras de Virgil Solis para as Metamorfoses de Ovídio). O alçado sobre a porta foi intervencionado com cimento e o alçado à sua direita apresenta uma cartela de enrolamento com tabelas ovais centrando cenas mitológicas no seu interior.
O programa é eficiente pela multiplicidade de recursos e as variações de motivos representados, geométricos ou figurativos, que informam o tipo de ornamentos de fresco, de estuque e de embrechado. Os panos da abóbada são decorados por pintura mural de cromatismo intenso, enrolamentos acânticos, mascarões, cartelas de enrolamentos, figuras de serafins tocando trompetas. As nervuras da abóbada são decoradas por elementos em estuque relevado, sendo os ângulos de cruzamento dos artesões decorados com máscaras humanas envolvidas em ornatos de conchas e pedras. Trata-se de um espaço referido por Túlio Espanca como (…) a mais caprichosa e certamente arcaica composição deste género da vila (…).
Coube ao grande historiador de arte dar a conhecer a existência deste minúsculo espaço, ultima reminiscência patrimonial que resta deste antigo solar Nobre.
CONCLUSÃO
A investigação histórica recente comprova a evidência de que estamos perante um importante legado patrimonial, de excepcional qualidade, que se encontra em avançado estado de degradação.
De facto, a Casa de Fresco do Solar dos Sanches de Baena constitui um dos mais inesperados testemunhos do Maneirismo calipolense na sua versão mais sofisticada – o gosto artístico da corte ducal - adequado a uma ambiência profana, marcada pela exploração da temática neo-platónica e pela expressão mitológica do Maneirismo italianizante de raiz erudita, miscigenada com temáticas cristãs e com referência orientalizantes, caso da representação de uma peça de faiança da China na decoração a fresco e de fragmentos de faiança chinesa na estrutura do embrechado.
A Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, entidade tutelar do edifício tem vindo a desenvolver estratégias no sentido de proceder à recuperação e conservação deste espaço, medidas que aliás tem vindo a ser anunciadas pela actual Mesa Administrativa, enquanto prioridades em termos de intervenção de âmbito cultural.
Neste sentido, têm sido mantidos contactos com a Fundação da Casa de Bragança, desde 2009, através do Museu-Biblioteca da referida Instituição, no sentido de promover acções concretas que possibilitem a reabilitação deste bem patrimonial, através da possível definição de um circuito turístico relacionado com a Pintura a Fresco em Vila Viçosa. Esta possibilidade encontra-se ainda em fase de avaliação, tendo em conta as especificidades do património em questão, com a supervisão da Direcção Regional de Cultura do Alentejo e do IGESPAR. È convicção das instituições envolvidas que a hipótese de intervenção e reabilitação a aplicar só se justifica no âmbito de uma planificação que origine uma funcionalidade específica a este conjunto e possibilite a sua fruição e possa constituir uma potencial fonte de receitas.
Esta poderá ser a solução concreta para a requalificação do monumento e da sua envolvente, através do estabelecimento de uma rede de parcerias que inclua a Câmara Municipal de Vila Viçosa, a Entidade Regional de Turismo do Alentejo e outros organismos locais e regionais, que possa promover uma candidatura objectiva ao Quadro de Referência Estratégico Nacional - Programa Operacional do Alentejo 2007-2013.
A Casa de Fresco tem vindo a merecer a atenção de especialistas através de  diversas pesquisas e análises de diferentes perspectivas em que são salientadas as características quase exclusivas deste bem cultural, quer em relação ao conteúdo programático das pinturas, quer a nível dos materiais utilizados. Estes estudos tem vindo a alertar a comunidade científica e as entidades responsáveis acerca da necessidade de intervenção e a análise da documentação produzida confirma este facto.
Já em 1999, no âmbito do levantamento realizado pelo Gabinete Técnico Local da Câmara Municipal de Vila Viçosa, a equipa pluridisciplinar coordenada pelo Arq. José Carlos Cuba Ramalho, no âmbito de um documento designado “Arquitectura da Água”, recolhe as primeiras informações num relatório técnico que identifica as principais patologias deste imóvel e da envolvente, onde já é evidenciado o avançado estado de degradação em que se encontra a Casa de Fresco. Esta avaliação incluiu descrição do imóvel e do conjunto, por categoria e tipologia, tendo sido aplicado método de valoração do potencial patrimonial e elaborado, neste caso, uma proposta detalhada de medidas de salvaguarda. Foram ainda considerados os seguintes descritores: referência de sítio; designação; localização administrativa; localização geográfica; cronologia; medidas de protecção; estado de conservação; descrição sumária; síntese de intervenções; tipo de uso; bibliografia principal e outras referências de inventários anteriores ou da responsabilidade das instituições com a sua tutela.
Esta recolha documental foi essencial para as restantes investigações mais recentemente desenvolvidas.
No ano de 2003, mais propriamente em Abril e no âmbito do processo inicial de candidatura de Vila Viçosa a Património Mundial da UNESCO, o Dr. Nuno Milheiro, Técnico Superior da Câmara Municipal de Vila Viçosa e coordenador desta iniciativa, propõe a classificação deste bem como imóvel de interesse público, através de uma ficha de caracterização onde se encontravam registados os dados históricos e os principais problemas estruturais do edifício, nomeadamente no que concerne a humidade e temperatura, factores que afectavam e afectam os elementos decorativos.
Esta medida foi inserida num processo mais vasto de caracterização de todos os bens patrimoniais de Vila Viçosa e definição das principais medidas a aplicar. Mais recentemente, já em 2009, no âmbito do estudo efectuado pelo Centro HÉRCULES da Universidade de Évora, em conjugação com outros organismos (Departamentos de Química e Biologia, Direcção Regional de Cultura do Alentejo, Centro de Geofísica de Évora e Laboratório Nacional de Engenharia Civil), foram identificados os principais problemas que afectam de forma estrutural a Casa de Fresco e que destacam a importância artística deste legado:
Infelizmente, devido ao abandono parcial e à falta de conservação, as pinturas estão num estado avançado de degradação, sendo visível o destacamento de camadas pictóricas e argamassas, eflorescências salinas e uma abundante colonização microbiológica. Este estudo permitiu identificar as diferentes populações microbianas presentes e avaliar a sua importância na deterioração destas pinturas. O estudo microbiológico foi efectuado em amostras recolhidas de zonas visivelmente contaminadas, utilizando zaragatoas e bisturis estéreis, por cultura em meios selectivos e observação por microscopia óptica e electrónica. Este estudo permitiu isolar 32 estirpes bacterianas e 34 fúngicas nos quatro painéis de frescos.
Revelou este estudo que o estado de degradação do Ninfeu é muito significativo e engloba diferentes patologias.
Pela avaliação da documentação produzida neste âmbito, torna-se evidente que este bem constitui uma referência cultural em Vila Viçosa, pela sua história e pelo seu carácter de excepção e a própria comunidade científica se tem debruçado sobre o seu valor intrínseco. Os estudos realizados por diversos intervenientes demonstram a preocupação relativa à requalificação deste bem e a necessidade de actuação urgente.
Este artigo pretende contribuir para que essa iniciativa possa ter lugar com a maior brevidade possível. Inserindo este processo numa designada política de  patrimonialização – isto é, o reconhecimento e a apropriação de testemunhos/bens culturais por uma comunidade  julgo ser da maior pertinência analisar e avaliar as formas de legitimação deste património em concreto, os seus principais protagonistas e os métodos de actuação.
Parece-me incontornável que só uma estreita e assumida relação da comunidade com os testemunhos herdados do passado, expressando, no presente, valores e saberes representativos, resultantes da interacção das pessoas com os territórios, poderá surgir e afirmar-se verdadeiramente a necessidade de empregar meios específicos para os gerir.
Como conjunto das obras nas quais uma comunidade reconhece os seus valores específicos e particulares e com os quais se identifica, o património deve ser perspectivado tanto na sua dimensão universal, como na dimensão local, atendendo a características de diversidade e de pluralidade, ora enquanto marcas de identidade dum território, ora enquanto forma de o distinguir e de conferir um certo potencial de coesão e de inclusão entre os seus habitantes ou população.
Para tal, é fundamental a escolha dos processos de valorização do património cultural a serem aplicados pelas entidades, públicas e privadas, que detêm a propriedade e/ou a tutela de destes bens.
Bibliografia
ESPANCA, Túlio –  Inventário Artístico de Portugal. IX. Distrito de Évora, Lisboa: Academia Nacional de Belas-Artes, 1978.
SERRÃO, Vítor - O Fresco Maneirista do Paço de Vila Viçosa (1540-1640), Fundação da Casa de Bragança, Lisboa, 2008.
SERRÃO, Vítor — ”Giraldo de Prado, cavaleiro-pintor de D. Teodósio II, duque de Bragança. Obras em Almada e Vila Viçosa”. Callipole. Vila Viçosa: Câmara Municipal de Vila Viçosa 2004, n.º 12, pp. 247-271
SILVA, Hélia - "Diagnóstico da biodeterioração por fungos e bactérias nas pinturas murais da Casa de Fresco de Sanches Baena”, desenvolvido em 2009, pelo Centro HÉRCULES da Universidade de Évora, Departamentos de Química e Biologia da referida Academia, Direcção Regional de Cultura do Alentejo, Centro de Geofísica de Évora e Laboratório Nacional de Engenharia Civil.


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