quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

UMA “BIBLIOTECA UNIVERSAL” EM VILA VIÇOSA - A Livraria da Casa de Bragança no século XVI.


Nos nossos dias, muitos desconhecem a importância que Vila Viçosa teve durante determinados períodos da História de Portugal.
É difícil imaginar como, no coração do Alentejo, esta pequena localidade possa ter assumido um lugar de destaque, não só a nível ibérico, mas também no que concerne ao contexto europeu.
De facto, em Vila Viçosa, durante o século XVI, assistiu-se a uma forte ação cultural promovida pela Casa de Bragança. Este é mais um aspeto singular e excecional que nos demonstra o prestígio e a erudição da Casa Ducal. Face à Coroa, os Duques de Bragança eram os únicos rivais, na riqueza, no prestígio e no poder. E o Paço de Vila Viçosa constituía a materialização arquitetónica dessa influência política.
Durante este período, Vila Viçosa foi um palco privilegiado onde acorreram diversas personalidades, que contribuíram para que este fosse um lugar de inigualável prestígio e dinâmica cultural. A Casa de Bragança era a única Casa que emulava a Coroa, em termos culturais.
O quinto Duque, D. Teodósio I é amplamente conhecido pela sua elevada erudição e pelo seu interesse pelas artes. Os anos formativos da sua vida coincidiram com a rápida ampliação da visão europeia do mundo resultante das grandes navegações ultramarinas, e a sua educação formal foi ministrada por conhecidos mestres humanistas.
Esta sólida preparação levou-o a adotar os valores e gostos do Renascimento. A passagem de grandes humanistas pela corte do Duque em Vila Viçosa é um exemplo categórico desse facto. Os conteúdos descritos no inventário de D. Teodósio I evidenciam a opulência e o poder da mais importante casa aristocrática do Reino.
Na descrição do inventário post-mortem do Duque, estão presentes conteúdos tão variados como a armaria, cavalaria, cerâmica, exótica, escultura, joias, medalhas, mobiliário, têxteis, moedas, música, prataria, vidros, iluminação, ourivesaria e livros, num total de mais de 6000 itens.
Os livros ocupam o primeiro lugar, em termos do número de exemplares, seguidos pelos têxteis.
A livraria do Duque D. Teodósio I (5º Duque de Bragança – 1510?/1563), lugar partilhado de estudos e outros saberes era, no seu tempo, uma das maiores da Europa, em comparação com outras bibliotecas da época, numa dinâmica ibérica e europeia, sendo constituída por cerca de 1600 volumes. Era impressionante e extraordinária, devido à sua dimensão e especificidade.
Além do Paço, que funcionava como uma verdadeira corte do Humanismo, o cultivo das letras exercia-se também nos conventos aqui existentes. Eram também providos de bibliotecas.
A livraria da Casa de Bragança constituía um caso de uma absoluta singularidade no caso português, que revela a especificidade da Casa de Bragança no contexto da aristocracia da época. Era também um símbolo de ostentação, poder e opulência.
Segundo a investigadora Prof.ª Doutora Ana Isabel Buescu, (que foi responsável por esta temática no âmbito do projeto “De todas as Partes do Mundo – O Inventário do 5º Duque de Bragança, D. Teodósio I”), tratava-se de uma livraria multilingue (com obras em latim, grego, hebraico e português), muito atualizada[1].
 O estudo comparativo efetuado por esta especialista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com outras bibliotecas régias e aristocráticas deste período, permitiu compreender a importância da Livraria do Paço Ducal de Vila Viçosa.
Trata-se de facto de uma grande livraria europeia do século XVI, sem paralelo em Portugal.
A título comparativo, a livraria de D. João I, Rei de Portugal (falecido em 1433), era composta por 20 livros; a livraria de D. Duarte, Rei de Portugal (falecido em 1438), tinha cerca de 80 livros; a de Afonso V de Aragão (falecido em 1458), continha cerca de 1000; a de Filipe III de Borgonha (falecido em 1467), tinha 859 livros; a livraria de Matias Corvino, Rei da Hungria (falecido em 1490), tinha 2500 livros; a livraria de Isabel, a Católica (falecida em 1504), era composta por entre 400 a 500 exemplares; Henrique VII de Inglaterra (falecido em 1509), tinha 170 livros; o Rei D. Manuel I de Portugal (falecido em 1521), era proprietário de 107 livros; Francisco, Rei de França (falecido em 1547) tinha 1890 livros e Juan Alonso de Gúzman, 6º Duque de Medina Sidónia (falecido em 1558), tinha 250 livros.
O Paço Ducal de Vila Viçosa, continha, sem dúvida, a maior Biblioteca Portuguesa do século XVI, só ultrapassada pela Biblioteca do humanista Aquiles Estaço, que se encontrava em Roma.
O que havia na livraria do Duque?
Esse espaço de silêncio e de sabedoria continha vários mapas mundi em pergaminho e constituía uma “biblioteca universal”, que contemplava os principais ramos de saber da época: Teologia, Leis e Cânones, Literatura religiosa em latim, Literatura profana em romance, Arquitetura (com obras dos grandes arquitetos renascentistas), Poesia latina, Música, Filosofia, Matemática, Astrologia, Astronomia, Medicina, Arte Militar e de Guerra e Geografia e História.
Os nomes fundamentais de cada saber estavam presentes nesta atualizadíssima Biblioteca, tanto no que concerne a autores, quer no que diz respeito a editores.
A investigação efetuada no âmbito do projeto De todas as partes do Mundo – O Património do 5º Duque de Bragança, D. Teodósio I[2], organizado pelo Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e pela Fundação da Casa de Bragança, permitiu constatar, no âmbito da livraria, a existência de uma elevada percentagem de autores contemporâneos (século XVI), também com dezenas de livros de Erasmo de Roterdão e publicações antiluteranas e antiprotestantes; a edição em quantidade de autores clássicos, recentes, ou muitos recentes e a atualização de obras a nível do humanismo e da ciência.
Destaca-se também a quantidade de obras manuscritas e livros herdados de D. Jaime e D. Leonor de Mendoza. Verificam-se de igual modo preocupações terapêuticas e de higiene, reveladas pelos livros de Hipócrates e manuais de anatomia. A nível da matemática e da astronomia, concluiu-se que só faziam parte do acervo livros eruditos, recentes e muito sofisticados.
Todos os livros tinham uma avaliação monetária, proporcionalmente inversa ao número de exemplares existentes, ou seja, os livros eram muitos, mas o seu valor era pouco significativo, tendo em conta os valores globais referidos no inventário, onde as joias e os têxteis assumem uma maior importância, em termos de valor monetário.
Não se tratava da biblioteca de um amador, na medida em que se verifica muito rigor nas escolhas e a interpretação desses dados só poderia ser efetuada por especialistas, o que pressupõe a presença de cientistas no quotidiano do Paço.
A existência de um observatório astronómico e a criação dos Estudos Gerais (Universidade) no Convento dos Agostinhos poderão ter sido elementos propiciadores da multiplicidade de livros existentes no Paço Ducal de Vila Viçosa.
A autorização concedida por breve do Papa Pio IV para este efeito é uma das razões apontadas para a diversidade e riqueza desta livraria, projeto que não chegou a ser concluído, devido à morte do Duque. Este desejo colocava a livraria do Duque num outro horizontal intelectual mais abrangente, tendo em conta este projeto cultural e político.
A livraria estava inscrita numa dinâmica ibérica e europeia no que respeita à aquisição e circulação de obras, o que poderá significar que o Duque D. Teodósio I (à semelhança do seu antecessor D. Jaime) teria vários agentes com ligações diretas a cidades como Sevilha, Salamanca, Paris, Lyon, Antuérpia, Basileia, Roma, Veneza. Estes emissários enviavam para Vila Viçosa informações detalhadas sobre tudo o que se passava no contexto europeu, nomeadamente em relação aos livros.
Infelizmente, por diversas vicissitudes, quase nada resta desta magnífica Livraria do Paço Ducal do século XVI. Trata-se portanto, e segundo a opinião da Professora Doutora Ana Isabel Buescu, de uma “Biblioteca Imaterial”, conhecida graças ao inventário do Duque.
Hoje foi possível, no âmbito de uma conferência que decorreu no Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, destinada ao alunos da Licenciatura em História da FCSH/UNL, coordenada pela Prof.ª Doutora Ana Isabel Buescu, conhecer um pouco mais sobre este tema.
O grande mistério e a pesquisa que terá que ser desenvolvida no futuro prende-se com a localização dos livros.
Onde estão? Como desapareceram? Terão sido destruídos com o Terramoto de 1755, depois da ida de Vila Viçosa para Lisboa em 1640? Estarão dispersos por alguma Bibliotecas do nosso país?
São os mistérios que estão por resolver…
Bibliografia consultada:
BUESCU, Ana Isabel, Livros em Castelhano na Livraria de D. Teodósio I (1510?-1563), Estudios Humanísticos. Historia. Nº 12, 2013, pp. 105-126



[1] Projecto FCT, PTDC/EAT-HAH/098461/2008, coordenado por Jessica Hallett, no âmbito do CHAM-FCSH/UNL/UAç.

[2] 1 Projecto FCT, PTDC/EAT-HAH/098461/2008, coordenado por Jessica Hallett, no âmbito do CHAM-FCSH/UNL/UAç.



terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O Convento Velho de São Francisco dos Capuchos


Foi criado a instâncias de D. Jaime, quarto Duque de Bragança no ano de 1500. Este local foi escolhido pelos frades castelhanos, dirigidos pelo Frei João de Guadalupe. Encontra-se a cerca de 3 km de Vila Viçosa, num “ermo apertado entre dois cabeços cercados de mato espesso, perto da Ribeira da Fadraga”, no caminho para São Romão.
Anteriormente, desde meados do século XV, existia neste local uma Ermida dedicada a Nossa Senhora da Piedade e foi também por este motivo que os Capuchos escolheram este lugar.
A Ermida foi reconstruída integralmente por Frei Paulo de Évora em 1654 e foi profanada em 1834 (ano da extinção das Ordens Religiosas), quando é roubado o sino do campanário. O edifício foi recuperado em 1947 pelo anterior proprietário, João Cravo.
 A insalubridade deste primeiro Convento originou que, em meados do século XVI, se verificasse uma mudança para um melhor local mais próximo de Vila Viçosa, o que se efetuou sob patrocínio do 5º Duque D. Teodósio I, junto do Outeiro da Forca. No entanto, este Convento Velho nunca foi abandonado. Até ao século XIX, os Capuchos zelaram sempre pelo local.
Esta nova instalação não foi ainda a definitiva, já que o espaço conventual se encontrava em terrenos alagadiços, provocando graves transtornos na vida comunitária e causando inundações no Inverno.
Dá-se portanto a 3ª e última deslocalização para o espaço onde se encontra atualmente o Convento dos Capuchos e onde estava uma antiga Ermida dedicada a São Lázaro. O lançamento da primeira pedra deste local teve lugar no dia 6 de Julho de 1606.
No Convento de São Francisco Velho encontra-se também a Fonte das Lágrimas, junto da Ribeira da Fadraga, que foi poeticamente descrita pelo Padre Espanca no final do século XIX. Esta fonte abastecia a comunidade franciscana através do aqueduto quinhentista que se vê nas imagens. Trata-se de uma construção do estilo gótico final, do tempo de D. Jaime. A envolvente remete-nos, segundo Túlio Espanca, para o “misticismo contemplativo da época”.
Durante as Invasões Francesas e depois de uma rebelião que teve lugar em 1808, o povo de Vila Viçosa teve que fugir para este lugar, para fugir à repressão dos soldados franceses do General D’ Avril.
A propriedade de São Francisco Velho pertence atualmente à Família Ferreira, a quem agradeço a oportunidade da visita.














segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O PASSADO ROMANO DA FREGUESIA DE PARDAIS

O texto que aqui apresentamos pretende aprofundar uma reflexão sobre a ocupação deste território durante o período romano. É graças à presença romana que se inicia a exploração do mármore, sendo hoje reconhecido que parte dessa extração foi utilizada nas grandes construções efetuadas na antiga capital da Lusitânia, Emérita Augusta (Mérida). E como seria o povoamento no concelho de Vila Viçosa? Pequenos povoados ou villas (residências campestres da classes altas romanas)?

Em 1965, o Diretor do Museu Monográfico de Coimbra, Dr. Bairrão Oleiro, desloca-se a Vila Viçosa, com o objetivo de estudar os dois sarcófagos romanos descobertos em São Marcos, na freguesia de Pardais. Os referidos monumentos funerários são encontrados no âmbito da exploração de mármore (que nessa altura se encontrava em pleno desenvolvimento), são oferecidos ao Museu-Biblioteca da Casa de Bragança e colocados no Castelo, onde ainda hoje fazem parte do circuito expositivo. O Sr. Gualdino Borrões, adjunto do Conservador do Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, Dr. João de Figueiredo, foi uma peça fulcral em todo este processo.

Com base em alguns testemunhos, tentando saber um pouco mais sobre este tema, o Dr. Bairrão Oleiro procurou obter mais informações in loco, sobre a possível existência de mais vestígios da ocupação romana na freguesia.

Existiam, de facto, algumas referências em relação ao “mundo romano” em Pardais. Aliás, a própria denominação parece provir da deturpação de “paredais”[1]. No século XIX, o cronista calipolense Padre Joaquim José da Rocha Espanca relata a existência de bastantes e notáveis vestígios da presença romana. Em 1824, precisamente na Herdade da Fonte da Moura, foi encontrada uma campa romana por um lavrador local[2].
Na sequência dos relatos, o Dr. Bairrão Oleiro dirigiu-se a Pardais, tentando localizar uma casa onde existiam outros fragmentos de mosaicos semelhantes aos que se encontravam em Vila Viçosa, informação que conseguiu confirmar. Na Courela da Fonte da Moura (no acesso á Fonte Soeiro), na referida freguesia, na casa térrea do então proprietário Joaquim José Gracias, encontrava-se um degrau corrido ao longo de toda a fachada, numa configuração única em Portugal. Toda a casa estava pavimentada com fragmentos de mosaicos romanos que pertenciam ao mesmo conjunto que se encontrava no Museu em Vila Viçosa. Outros fragmentos foram incrustados na parte superior de um murete junto à entrada[3].

O Sr. Joaquim José Gracias informou o Dr. Bairrão Oleiro que esses e muitos outros materiais, incluindo moedas, haviam sido encontrados há anos nas imediações da sua casa, também como consequência da exploração das pedreiras de mármore e que bastantes coisas tinham sido levadas para Lisboa por um engenheiro “estrangeiro” que orientava a exploração nessa época.
O Dr. Bairrão Oleiro afirma que esta estação deverá ser a mesma que foi descrita pelo Prof. Manuel Heleno, em 1937, em comunicação apresentada ao Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia e considerada como uma “villa” romana (com uma sala pavimentada de mosaico e desenho geométrico, canalização de chumbo, colunas de mármore e materiais de construção, espalhados por uma área de cerca de um hectare)[4].

Hoje foi dia de visitar a Fonte da Moura. Por entre as pedreiras de mármore e a industrialização marcada na paisagem, pude constatar que algo permanece neste território. As características muito relevantes na freguesia de Pardais eram a fertilidade dos solos e a abundância de água, fatores que determinaram a ocupação humana deste território, pelo menos desde o período romano e que continuam presentes.
Falei com o Sr. Joaquim Gracias, filho do proprietário que partilhou as informações com o Dr. Bairrão Oleiro. Recordava-se perfeitamente da forma como a exploração das pedreiras alterou substancialmente a paisagem e contribuiu para a degradação ou perda dos vestígios do período romano.

Ainda assim podem encontrar-se alguns desses vestígios, no local onde terá existido uma villa romana, que teria algumas semelhanças com a que existia na Torre do Cabedal, na freguesia de Ciladas/São Romão, no limite noroeste do concelho de Vila Viçosa. Seriam estas “villae” propriedades de famílias abastadas com ligações a Emerita Augusta (Mérida), antiga capital da Lusitânia? Pode ser uma hipótese.
Uma outra hipótese tem a ver com a possibilidade de ter existido no local um povoado romano, tal como aconteceria noutras zonas do concelho, nomeadamente em Bencatel, como estruturas de apoio para a exploração do mármore, durante esse período.

O trabalho de terreno efetuado hoje permitiu identificar um número considerável de fragmentos de mosaicos, tijolos, lateres e um marco em pedra. A suposta villa ou povoado aqui existente teria uma dimensão considerável e várias estruturas para distribuição e armazenamento de água.
Joaquim Gracias referiu que o seu pai, no extremo da horta, terá encontrado aquilo que seria parte de um tanque, nos anos 60. Recorda-se também do elevado número de mosaicos encontrados na envolvente da Fonte da Moura. Talvez um levantamento arqueológico permita saber mais sobre esse passado romano do concelho. Seria conveniente que a Carta Arqueológica pudesse ver a luz do dia com alguma brevidade, para se poder identificar e salvaguardar o que ainda for possível.




[1] CARNEIRO, André. "Um primeiro olhar sobre o povoamento romano no concelho de Vila Viçosa", in revista de cultura Callipole, n.º 21, Câmara Municipal de Vila Viçosa, 2013, pp. 213-232.
[2] Espanca, Pe. J. J. da Rocha (1983) Memórias de Villa-Viçosa. (Cadernos Culturais de Vila Viçosa no 1 a 35), Vila Viçosa, Câmara Municipal de Vila Viçosa [1.ª ed. 1885].
[3] Parte destes mosaicos foram posteriormente depositados no Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, mais propriamente no Castelo de Vila Viçosa, onde ainda hoje se encontram.
[4] Vide O Arqueólogo português, nº II, página 293.





                           Conjunto de fragmentos de mosaicos encontrados na Fonte da Moura




Courela da Fonte da Moura (Fonte Soeiro- freguesia de Pardais), onde terá existido uma villa ou um povoado romano





                                                      Fragmentos de tijolos romanos





                                  Marco que foi posto a descoberto nos anos 60 do século XX