domingo, 23 de outubro de 2022

JOSÉ TRINCHEIRA, O "LEÃO DO ALENTEJO"

 

António José Serrador Trincheira nasceu em Borba no dia 6 de Setembro de 1935.

Apesar de ter nascido em Borba, sentiu-se desde sempre calipolense, como gostava de frisar. Era filho de Eulálio Trincheira e de D. Rosália. O seu pai era natural de Montijo (Extremadura espanhola) e a sua mãe, de Borba.

Deste matrimónio nasceram nove filhos. Aos dois anos de idade de António José, a família muda-se para Vila Viçosa. O pai resolvera trocar a vida no campo por um trabalho nas obras da estrada que iria fazer a ligação de Alcácer do Sal ao Algarve, onde foi capataz dessa longa e morosa empreitada.

Na sua ausência, foi a mãe que tomou conta da vacaria que tinham montado em Vila Viçosa. Todos os irmãos se dedicavam ao trabalho árduo, para a ajudar a família, “de sol a sol”. Aos nove anos, abandonou a escola para se entregar exclusivamente ao pastoreio. Levava as vacas para a Quinta das Quatro Cruzes. Enquanto o gado ficava a pastar, António José entretinha-se a brincar com o seu cão, de nome “Não-se-dá”.

Foi na Quinta das Quatro Cruzes que ensaiou os seus primeiros passos como toureiro. Para além disso, era ele o responsável pela venda do leite nas ruas de Vila Viçosa. Teve uma infância dura e muito exigente. Contudo, o sonho de ser matador de toiros sempre esteve presente, desde tenra idade.

Com quinze anos, depois da sua primeira paixão da adolescência, Filomena de seu nome, lhe ter dito que só namoraria com um toureiro, António José começa a treinar afincadamente no Largo do Carrascal, juntamente com outros jovens da sua idade. No entanto, aspirava a algo mais. Não era suficiente o treino com a “tourinha”. Sentia-se capaz de enfrentar um touro na arena. Movido por esta vontade e sabendo que na Tapada Real de Vila Viçosa pastava o gado bravo do ganadeiro Cláudio Moura, saltou o muro do recinto e lá foi enfrentar o gado, que fugiu assustado.

No entanto, a Guarda Republicana estava por perto e acabou por ser preso. Foi o seu pai que o foi libertar à prisão. E a sua vida regressou à normalidade, entre o campo, o gado e a venda de leite. Nos tempos livres, dedicava-se aos treinos no Largo do Carrascal.

A sua grande oportunidade surgiu em Monforte, na Quinta dos Francos, propriedade do ganadeiro Cláudio Moura, graças ao apoio do Dr. Bulhão, que o levou para o local. Mas a sua maior referência, neste período, foi o Sr. António Pombeiro, por quem nutria uma forte admiração.

Em Estremoz, numa “vacada” fez a sua primeira aparição pública e viveu a sua primeira tarde de glória. No regresso a Vila Viçosa, a reprimenda do padrinho António Pombeiro não se fez esperar. No entanto, depois do trabalho no campo e da venda do leite, começou a ter as primeiras lições na arte de tourear, com o seu mentor. Chegava ao final de cada dia cansado, mas feliz.

Pouco tempo depois, em 1952, abre a Escola de Toureio Arena, pelas mãos de Ernesto Costa, Augusto Gomes, Júlio Procópio e Sebastião Saraiva. Era a grande oportunidade para José Trincheira.

Com o beneplácito do pai e com o apoio de António Pombeiro e da população de Vila Viçosa (que através duma subscrição pública facultou mensalmente o dinheiro necessário), parte para Lisboa, onde fica alojado na casa duma tia paterna, de modo a poder frequentar as aulas de toureio. Na capital a exigência mantinha-se. Para se manter em forma, frequentava o ginásio, tal como fazia antes no Seminário de Vila Viçosa.

Ernesto Costa, que viria a ser seu apoderado e Augusto Gomes, responsáveis pela Escola Arena, escolheram o nome artístico para o novo artista: José Trincheira, pelo facto do apelido estar também relacionado com a “Festa Brava”.

Inicialmente, na primeira tenta de António Durão, a lide não lhe correu de feição, o que levou os mestres e os colegas a desconfiarem das suas capacidades. Mas Trincheira não desistiu do seu sonho. Continuo a trabalhar arduamente, em busca do seu objetivo.

Na segunda oportunidade, numa ida dos alunos da Escola Arena a Coruche, para uma “tenta” do ganadeiro António Teixeira, a performance foi muito melhor. O jornalista Pepe Luís, presente no evento, foi o primeiro a reconhecer o potencial de Trincheira. Na terceira aparição pública, num tradicional espetáculo de Carnaval no Campo Pequeno, vive o seu primeiro momento de glória na capital, premiado com duas voltas ao redondel.

A apresentação de José Trincheira como aspirante de novilheiro surge no ano de 1955, na Praça de Toiros de Santa Eulália, com toiros do Eng.º Sommer de Andrade. A praça estava esgotada, pois o povo de Vila Viçosa tinha-se deslocado em massa para apoiar Trincheira. Foi um grande triunfo, com o toureiro a sair em ombros, depois de seis voltas ao “ruedo”.

Posteriormente, dá-se a sua aparição oficial em Lisboa, na Praça de Algés, onde obtém novo triunfo. Forma parelha com Amadeu dos Anjos e os triunfos sucedem-se. A crítica apelida-os de “Príncipes da Tauromaquia”. A ascensão de Trincheira no mundo da Tauromaquia é meteórica. Ganha o apodo de “Leão do Alentejo”.

Em Olivença, o primeiro triunfo em Espanha, em Setembro de 1956. Seguem-se brilhantes atuações em Vila Franca, Cartaxo, Lisboa e finalmente, Sevilha, já em 1957.

Ai surge o primeiro romance sério, com Maria del Carmen Ostos. Ao mesmo tempo, seguem-se atuações em várias novilhadas em praças de segunda linha. Os treinos continuam a ser exigentes e duros. Mas a recompensa chega, com os contratos para as Feiras de Sevilha e de Jerez de la Frontera.

Depois do triunfo na Real Maestranza de Sevilha, a 23 de Maio de 1958, é contratado para sessenta e três novilhadas nesse ano. A carreira triunfal como novilheiro prosseguia, com passagem por importantes praças espanholas, com destaque para Barcelona. E em Portugal o seu nome era sinónimo de praça cheia.

E eis que chega o dia da sua alternativa como matador de toiros, no dia 28 de Setembro de 1958, na Praça de Toiros de Cáceres. César Giron foi o seu padrinho e Manolo Segura a testemunha, para toiros de Pablo Romero. O triunfo foi absoluto, com a saída da praça em ombros.

Seguem-se mais sete corridas até ao final da temporada em Sevilha, Barcelona, Palma de Maiorca, Cádis, Zaragoza, Valência e Badajoz. Terminada a temporada, regressa a Portugal, onde conhece a cançonetista Maria José Valério, com quem inicia o namoro.

No ano seguinte, volta a Espanha e é contratado para tourear no México. No regresso deste país, sofre uma cornada em la Línea de La Concepción (Cádiz) Nesta temporada, cumpre 48 corridas em Portugal, Espanha e México, com mais triunfos apoteóticos.

No ano de 1961, casa com Maria José Valério. Um disco desta artista, um pasodoble intitulado “Olé Trincheira” assume-se como um êxito sem precedentes no mundo da rádio e do disco. Este acontecimento musical acaba por precipitar o casamento. No Mosteiro dos Jerónimos, dá-se o casamento do ano. O padrinho da noiva foi Diamantino Vizeu e o padrinho do noivo Ernesto Costa, o apoderado de Trincheira em Portugal.

No entanto, este matrimónio não correu bem. Conheceu entretanto Anabela da Cruz Boto, por quem se apaixona. Depois de alguns imprevistos, parte para se fixar em Angola, onde já tinha toureado. Por esta altura pensou em abandonar a vida de toureiro, o que se veio a concretizar.

Fixado em Luanda, José Trincheira começa a trabalhar como técnico de aviões no Consórcio Técnico de Aeronáutica, tendo a família passado por necessidades, devido ao parco salário que ganhava. De vez em quando organizava espetáculos taurinos no sul de Angola, para matar saudades desses tempos já distantes.

Da união com Anabela nasce José e mais tarde uma menina, que morreu meses depois. Com a Revolução dos Cravos e o processo de descolonização, regressa a Portugal, com a ideia de rumar ao Brasil.

Contra a vontade de Anabela, este regresso a Portugal foi também um regresso ao mundo dos toiros. A sua reaparição dá-se no dia 18 de Abril de 1976, no Campo Pequeno. O regresso fora um triunfo!

Seguiu-se uma apresentação em Vila Viçosa no dia 29 de Maio. Fazia três anos que falecera a sua Mãe. Novo triunfo. Tourear em Vila Viçosa tinha para Trincheira um sentimento especial. Seguem-se corridas em Matosinhos, Torres Vedras, Espinho, Póvoa, Campo Pequeno, Festas dos Capuchos, de novo em Vila Viçosa e Setúbal, onde atuou lesionado, devido a uma cornada que sofrera num treino[1].

Referência incontornável do mundo da tauromaquia, José Trincheira foi homenageado pela Câmara Municipal de Vila Viçosa e fez parte, em 2012, da Comissão de Honra de homenagem ao cavaleiro calipolense José Luís Cochicho.

 Faleceu a 22 de Outubro de 2022 em Beja



[1] ANJOS, Rui, Trincheira – Arte, Valentia e Tragédia, Domingos Mathias de Araújo, Mafra, 1977




sábado, 15 de outubro de 2022

LENDAS E HISTÓRIAS DA FREGUESIA DE CILADAS/ SÃO ROMÃO

 

Na freguesia de São Romão, encontram-se vestígios de antigos povoados na zona do alto dos Castelos, junto à ribeira da Asseca, com destaque para uma cista megalítica (estrutura sepulcral caraterística do Neolítico e da Idade do Bronze), de onde foram retirados vários fragmentos de cerâmica. Importante é também o castro da Brioa, junto do ribeiro do Furadouro, onde existem ainda alguns vestígios do que seria uma antiga muralha romana, assim como objetos de cerâmica.

O Ribeiro do Furadouro corta dois elevados montes, formando uma paisagem muito semelhante às “portas do Rodão”, chamada de “Rocha do Lago”, ou “Rocha da Águia”. Neste local, na maior profundidade, junto ao pego, encontra-se a Casa da Moura Encantada, constituída por duas abóbadas em tijolo hoje bastante arruinadas e teve em tempos uma porta e uma fresta, misteriosa construção antiga certamente relacionada com o aproveitamento de água. Por cima corre um muro que seria de uma velha albufeira e que hoje é uma fértil várzea.

Diz a lenda que aqui habita uma moura encantada, que se transforma numa serpente “grande e grossa”, à meia-noite, surgindo no meio da rocha, que se abria. Quem avistasse a cobra e permitisse que esta lhe desse um beijo, podia ficar com todo o ouro que se encontra neste lugar.

Em toda esta zona, foram encontrados testemunhos do período romano, o que revela a antiguidade da ocupação humana neste território.

Rezam as crónicas do século XVIII do Padre Alberto Mendes Catela, que na freguesia de São Romão, mais especificamente na herdade designada “Casarão dos Frades Agostinhos”, existiam jazidas de prata, enxofre e cobre e que neste local, já nas proximidades da freguesia de São Brás dos Matos, estavam umas covas, de onde se extraiu a prata com que se fez a coroa da imagem de Nossa Senhora dos Remédios, da capela do Forte do Conde.

Esta imagem foi levada para Goa por D. Francisco Lobo, capitão-mor das naus da Índia, pelo ano de 1587, tendo regressado em 1670, depois de várias peripécias.

Neste local, junto das jazidas, diz a lenda que existia uma fonte, ou “um nascimento de água”, da qual bebia D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV e Rainha de Inglaterra, pelo casamento com Carlos II. Quando regressou a Portugal, mandava vir desta água, por ser mais leve e saudável.

Na ribeira da Asseca, assim chamada porque secava todos os anos, encontra-se uma antiga ponte (a que chamam indevidamente de “Ponte Romana”), que no século XVIII estava já bastante danificada, condicionando a circulação de pessoas e mercadorias, que vinham de Juromenha, Olivença e das demais partes de Castela e que assim não se podiam comunicar com as gentes de Vila Viçosa, Borba e Estremoz.


Bibliografia

LOURO, P. Henrique da Silva, Ciladas/São Romão (Apontamentos Históricos), Évora, 1967