quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

OS MACABROS CRIMES DO ALTO DA PORTELA - parte II




Hoje, com a ajuda do Sr. António Varandas Rosado, foi possível localizar aquilo que pensamos ser o que restou do pedestal que se encontrava no local onde aconteceram os terríveis homicídios do Alto da Portela, em 1781.
Também encontrámos o “grande e largo rochedo de superfície quase plana”, mencionado pelo Padre Espanca, onde mãe e filho foram brutalmente assassinados e na proximidade do qual se levantou o dito pedestal…

Estes vestígios encontram-se num ermo, no caminho para a Fonte do Lobo e antes da Toca do Lagarto, na direção Vila Viçosa - Bencatel, 

Pouco resta desse triste monumento… Apenas uma memória distante de uma história terrível…








quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

OS MACABROS CRIMES DO ALTO DA PORTELA


Numa altura em que a violência doméstica parece atingir dimensões inexplicáveis nas sociedades contemporâneas, vale a pena refletir sobre esta triste história, que perdurou na memória de Vila Viçosa durante muito tempo.

I

Vamos narrar um facto, com a ajuda dos escritos do Padre Espanca, que horrorizou os habitantes de Vila Viçosa nos anos de 1781 e 1782 e que permaneceu durante muitas décadas na tradição oral dos Calipolenses.
Quem saí de Vila Viçosa, pela estrada de Bencatel, subindo pela encosta de uma pequena serra, chega a uma zona antigamente chamada “Portela de Évora” e que a partir do século XIX passou a designar-se exclusivamente como “Portela”.
Nesses anos, pela estrada, ao chegar à primeira curva, estava um pedestal de alvenaria semelhante aos cipos de mármore que os Romanos erigiam ao lado das vias públicas, para indicarem se ali jaziam as cinzas de algum finado ilustre ou favorecido pela fortuna.
Chamavam-lhe a “Cruz da Portela”. Em 1892, a cruz já ali não se encontrava, mas tão somente o pedestal quadrado onde estava erigida e na parte inferior, rente ao chão, onde estava gravada a lembrança do ano deste terrível acontecimento -1782-[1].
Este triste monumento fora ali colocado para reclamar as orações por duas vítimas inocentes, sacrificadas por um monstro com figura de homem. Esse homem, de figura agreste, com testa muito pequena, cabelo basto na cabeça avolumada e sobrancelhas pegadas e muito densas, abafadas pelas guedelhas de hirsuta marrafa, de olhar sombrio e desconfiado, é o macabro protagonista desta história.
O dito homem, depois de ter fruído por algum tempo das carícias de uma terna esposa e de um filhinho de oito meses, enjoou-se das ternuras daquele estado invejável, quando existe o encanto de um amor recíproco…
Os trabalhos para sustentar aquela família depressa lhe criaram o arrependimento por ter assumido o casamento.
Mas quantos em redor de si, nesta época, tinham 6, 8 e 10 filhos e não desanimavam perante as dificuldades financeiras, arrastando-se na miséria e lutando todos os dias para a vencer? Não viviam quase todos dessa forma, nesse tempo distante?
Mas o amor natural de corações bem formados serve de bálsamo a todas as feridas que surgem perante o lidar incessante e sempre insuficiente para adquirir o que é necessário, no que há família diz respeito.
Conformando-se com o destino, muitos chegavam ao lar, ao fim do dia de trabalho árduo, com os braços quebrados pela dureza da jornada, mas com o coração contente e cheio de felicidade. Os carinhos da esposa e as meiguices dos filhos faziam esquecer as inclemências da vida pobre e trabalhosa. Comiam satisfeitos a parca ceia, rodeados pelos muitos filhos travessos, já sem se lembrarem dessas mazelas do dia de trabalho.
Porém, este monstro de quem iremos falar era indiferente a tudo isso. Não tinha alma, nem coração…
Era insensível às ternuras da esposa e companheira e aos sorrisos do filho.
Por não querer trabalhar para dar o sustento à família, meditou em desfazer-se da mulher e do pobre filho. E esta era a única razão que encontrara. As leis eclesiásticas e civis desse período não permitiam o divórcio.
Como podia este monstro descasar-se e despaternizar-se? Ausentando-se para longínquas terras e abandonando-os, como costumavam e costumam fazer outros semelhantes a si?
Corria o dia 27 de Setembro de 1781, quando as uvas já estavam bem sazonadas e se faziam os preparativos para a vindima. Disse à esposa que um guarda-uvas prometera dar-lhe um cesto delas, devendo ir recebê-lo naquela precisa noite.
Convida-a para que o acompanhe a fim de trazer para casa o cesto de uvas, enquanto ele prosseguia para os olivais onde tinha que trabalhar no dia seguinte, dormindo entretanto debaixo de um céu sereno e sem nuvens.
As palavras do esposo tiveram o cunho de sinceridade, como que saídas de um coração amigo e extremoso. A boa e inocente moça acreditou piamente no convite do marido e tomando o bebé ao colo com o braço esquerdo, levava um cesto para as uvas na mão direita. Seguia calmamente os passos do marido que, de mochila e enxadão às costas, ia meditando ainda sobre o melhor lugar para lhes pôr termo à vida. Subiram a encosta da Portela, com vinhas à direita e à esquerda nesse tempo e chegaram ao sítio do pedestal da cruz funerária já descrito. A pobre mulher estranhou que o seu marido a levasse para os olivais.
- João, para aqui me levas tu onde já não há vinhas? Não sei como isto me parece…
- Não há vinhas?! Ainda há vinhas para além para diante e foi lá que me prometeram o cesto das uvas.
- Ai Jesus! Isto para aqui mete medo, de noite… - retorquiu a mulher - Até as sombras das oliveiras parecem homens escondidos. Com moitas de carrascos e penedos, até se perde o trilho da vereda…
- Tens medo? Eu não tenho nenhum…
-Ah! Tu levas-me enganada…
-Enganada, sim! Eu mesmo, que sou tão amigo de brincadeiras!
A pobre Teresa ia já bem assustada, não tanto pelo quadro sombrio das fragas que antevia naquela agreste solidão, mas sim porque o seu coração lhe inspirava desconfianças do sinistro intento do seu marido.
Continuando a caminhar pelo atalho que destaca da via pública junto ao pedestal da cruz, haviam-se adiantado já pela planura da Portela e chegado ao pé de uma colina que à mão esquerda se levanta entre a planura referida e a estrada de Bencatel no sítio da Toca do Lagarto.
Nesse local estava um grande e largo rochedo de superfície quase plana circundado por algumas oliveiras e moitas de carrasco alvarinho, medronheiros, alecrim e outros arbustos. Foi este o triste altar destinado para a imolação das inocentes vítimas.
O abominável João parou junto dele, pousou a enxada e, arrancando o menino dos braços da mulher, que lho cedeu pensando que era para o acariciar, pegou-lhe nas perninhas e deu-lhe violentamente com a cabeça no rochedo… Foi então que a infeliz mulher acabou de se convencer das tétricas intenções do marido, e soltou um suspiro profundo do íntimo da alma!
Chorou revoltada contra o esposo por lhe matar o filho das entranhas de ambos, o seu filhinho adorado… Mas o selvagem não se deteve a responder-lhe: alçou o enxadão, descarregou-lho na cabeça e fê-la cair no chão, perdendo os sentidos. Amiudou os golpes com sanhuda fúria e só quando cessaram de todo os seus suspiros e gemidos é que se retirou a passos acelerados, parecendo-lhe que alguém o via e seguia…

II

Tinha tornado quase à estrada pública perto do pedestal da cruz e ali entendeu dever suster a sua retirada, para observar se alguma pessoa com efeito dera notícia do crime horrendo. Parou e estendeu as vistas em redor de si. Não viu ninguém. Reinava por aquela quebrada o silêncio dos sepulcros e ele folgou no horror das trevas.
Mas, ao mesmo tempo, assaltou-o uma dúvida e um temor. A dúvida era se ficara a mulher inteiramente morta e o temor, que sobrevivendo ela, o denunciaria depois nos tribunais da justiça. Demorou-se alguns minutos mais, aplicou os ouvidos para o lugar dos assassinatos e eis que pareceu escutar amortecidos suspiros e gemidos entrecortados.
Avançou por isso alguns passos e chegou a distinguir o pranto da desditosa… Todo ele estremeceu de raiva e de susto!
Adiantou-se mais ainda para sondar se alguém a rodeava prestando-lhe socorro e por último, verifica que Teresa ainda sobrevivia e carpia a sua triste sorte e do seu filho. Estava exulada, rodeando-a tão somente o silêncio da noite. Então o espírito cruel e sanguinário dita-lhe que não deve deixá-la com vida para não poder denunciar crimes tão atrozes.
Chegou-se decididamente à desventurada consorte moribunda, a quem encontrou já sentada no rochedo com o cadáver do filho no regaço. Descarrega-lhe o enxadão na cabeça com maior força ainda e não cessa de a massacrar enquanto lhe sentia alguma respiração. Era já cadáver e ainda lhe moia o peito e a cabeça…
Retira-se então descansado com a certeza de não viver já a sua mulher, nem o seu filho. E com passos lentos e pernas trementes desceu da serra encaminhando-se para a sua casa, muito contente por haver realizado a empresa que planeara com o maior segredo possível.

III

Entrando na casa, deparou-se com a solidão que ambicionara, mas esta começa a produzir-lhe negrumes de horror, pensando nas vítimas que outrora davam luz e animação à vivenda. Deitou-se no leito nupcial em que sua esposa tantas vezes o afagara e ele mesmo fora testemunha das gracinhas da inocente criança. Mas esse leito era já para ele como uma espécie de castigo. Revira-se a cada instante, fugindo-lhe o sono das pálpebras. Não pode já adormecer com o remorso a roer-lhe as entranhas e a agitar-lhe o cérebro a lembrança do justo castigo que as leis então destinavam inexoravelmente aos que não queriam respeitar a inviolabilidade da vida humana…
João era um homem grosseiro, sem instrução alguma, nem sequer de ler, escrever ou contar. Se fora instruído, perpetraria da mesma sorte o negro atentado, porque a instrução não melhora nem piora o coração dos homens; dá-lhes sim, mais finura e malícia. E cometendo os projetados assassínios, trocaria as suas formas brutais e selvagens por meios ardilosos e sorrateiros que o subtraíssem às investigações dos tribunais de justiça.
No outro dia não foi trabalhar. Pôs-se à janela com um lenço em redor da cabeça, para fingir à vizinhança da Rua dos Fidalgos (atual Rua Dr. Couto Jardim) que era a dona da casa quem ali se via. Mas não acertava no que havia de fazer para escapar à ação da justiça. Arrepelava-se de não ter enterrado os cadáveres com a pressa de abreviar a execução da sua empreitada. Os cadáveres (dizia ele consigo mesmo) seriam encontrados cedo ou tarde e portanto reconhecidos, cabendo-lhe a responsabilidade ou pelo menos a suspeita de ter sido ele a tirar-lhes a vida.
Lembra-se então de fugir para terras longínquas. Deixa a sua morada, fronteira ao Hospício das Chagas e atravessa o Terreiro do Paço buscando a Porta do Nó.  Avança pela estrada de Borba, mas a vista fica emareada, parecendo-lhe que um rio de sangue lhe intercepta a marcha, como refere a tradição. Negrumes horríveis lhe entenebrecem o espírito; fraqueiam-lhe as pernas; quer avançar pela estrada, mas faltam-lhe o ânimo e as forças.
Instintivamente voltou o rosto desfigurado, empalecido e agora mais tétrico e horrendo. Tornou de novo para a vila, metendo-se em casa a simular a sua Teresa, posta debaixo da adufa, com o lenço branco em redor da cabeça. Pensando sempre em fugir à imputação do seu crime hediondo, lembra-se de fingir que a esposa lhe tinha desaparecido, sem ele saber do seu destino. À boca da noite vai a caminho da casa da sogra e exige que lhe dê conta da filha, pois não a encontrava em casa. A sogra fica atónita.
Confessou-lhe a sua ignorância a tal respeito e começou logo a desconfiar das maneiras do seu genro. Pareceu-lhe que ele não estava de todo em si…
A sua fisionomia, agora mais desconcertada e repugnante, revelou-lhe que nele se passava algo de extraordinário. Os seus gestos, agora ainda mais bruscos, as suas palavras rudes e entrecortadas com um olhar vago e incerto, denunciavam-lhe uma agitação nervosa, efeito do trágico acontecimento.
A noite seguinte foi para João ainda mais tenebrosa para roubar-lhe o repouso do espírito e do corpo. Negava-se o sono a adejar-lhe o leito para lhe trazer descanso ao corpo e apagar-lhe os fantasmas que via erguerem-se imponentes e ameaçadores ante o seu espírito atribulado. Levantou-se ainda para fugir de novo pela estrada de Borba e topou com os mesmos empeços da tarde precedente. Ocorreu-lhe que algum encantamento o alucinava e atravessa a vila, para buscar refúgio na porta de São Sebastião[2].
Aqui, apenas se adianta com a mira posta nas paragens de além do Guadiana em território espanhol, de novo o assaltam fantasmas ameaçadores e medonhos espectros o fazem vacilar e estremecer. Encheu-se de terror e fraquearam-lhe as pernas, impossibilitando-lhe a fuga. Vê-se obrigado a tornar a casa onde as imagens da mulher e do filho continuavam a aparecer na sua fantasia delirante.
Quando ao alvorecer do dia surge, já se lhe afigura que é o Alcaide e o escrivão das Armas que vêm prendê-lo.

IV

Começara já a correr pela boca da mãe da infeliz da Teresa a notícia do seu desaparecimento e ao segundo dia, encontrava alguém os cadáveres na Portela. O fétido do sangue derramado e já podre chamaram a atenção das pessoas que transitavam pela vereda escabrosa que conduzia à Fonte do Lobo.
Reconheceu-se facilmente a infeliz consorte de João. A sogra deste correu a inspecionar os corpos e, certificando-se de que eram os de sua filha e neto, encaminhou-se dali à presença do Juiz de Fora Miguel Teotónio dos Reis Rocha, para querelar destes assassínios, denunciando logo como autor deles o seu próprio genro. O Alcaide da Vara foi logo chamado para ir com o seu Meirinho fazer a diligência da captura.
Procuram-no em casa, encontram-no e fizeram-no ir à presença do Juiz.
A mesma cobardia que tivera em assassinar à traição uma débil mulher e uma tenra criança de oito meses, teve-a igualmente perante o magistrado. Não precisou este de empregar rodeios para lhe apanhar a confissão do crime. Vomitou tim-tim por tim-tim toda a história desta carnificina e o que fez perante a autoridade administrativa e judicial, fê-lo ainda mais minuciosamente aos seus amigos e conhecidos.
Metido logo na cadeia pública, foi ali procurá-lo o seu antigo amo, que o tinha em boa opinião e que procurou certificar-se da má nova que pusera toda a vila em arrancos de indignação contra o brutal e feroz assassino.
Declarou-lhe logo prontamente o preso que era verdade ter cometido os crimes que lhe imputavam, produzindo talvez o cansaço do seu espírito essa fraqueza que o comprometia fatalmente.
Perguntou-lhe com estranheza o patrão quais os motivos que tivera para tão bárbaro e vil procedimento. João respondeu-lhe secamente que não podia sustentar a mulher e o filho…
Levantado no mesmo dia o auto do crime pelo Escrivão da semana em presença do Juiz de Fora e de dois facultativos, foram os cadáveres conduzidos ao Carrascal e sepultados logo ali na Ermida de São João Baptista, por não poderem entrar na vila exalando já um fedor nauseabundo.

V

Correu o processo do crime os trâmites normais. Interrogaram-se as testemunhas e as indicações do seu depoimento confirmaram a confissão espontânea do réu. Não restava dúvida alguma sobre a sua criminalidade e por conseguinte, o Juiz em presença das leis penais em vigor, sentenciou-o à pena última de morte natural pela forca e colocação da cabeça em pau levantado na via pública perto do lugar do crime para espelho dos malvados.
Fez-se a competente apelação para a Relação de Lisboa. Apareceu então na corte o sogro de João, instando pela confirmação da sentença. Assim entenderam justo os Desembargadores e a piedosa Rainha D. Maria I não quis moderá-lo por se não verem no horrendo atentado circunstâncias algumas que a movessem à compaixão do réu.
Já este ao tempo fora transferido para a cadeia do Limoeiro. Ali esteve três dias de oratório na forma do costume, a fim de se poder penitenciar da vida passada e não perder a bem-aventurança da futura.
E ao cabo deles foi pendurado na Viúva do Cais do Tojo, como o povo chamava à forca ali estabelecida. Antes de lhe meterem o corpo na tumba da Misericórdia, cortou-lhe o carrasco o pescoço e meteu a cabeça numa alcofa, para se cumprir a última parte da sentença. Embarcando para o Alentejo, entrou numa caleça e veio custodiado por escolta de cavalaria até á nossa vila.
Chegado aqui, mandou o Juiz de Fora que o Alcaide da Vara com o seu meirinho, o Escrivão de Armas e o porteiro do geral fossem acompanhar o algoz que, com a cabeça espetada num chuço, devia percorrer os largos e as ruas mais movimentadas. Assim se fez.
A voz do porteiro, com o ditado do Escrivão das Armas, publicou a última sentença do réu com a exposição da sua cabeça num poste junto à cruz funerária das vítimas da sua crueldade. Muito povo e principalmente muita rapaziada acompanharam o séquito do carrasco até ao alto da Portela, onde se arvorou um pau de castanho com a cabeça espetada nele, para escarmento de quem ousasse praticar semelhantes feitos.
Isto teve lugar já no ano de 1782.

VI

Ao cair da noite, voltava da vila de Redondo o avô paterno do Padre Joaquim Espanca (que descreveu esta história), Manuel Joaquim da Costa, Espanca de alcunha, insigne oficial de carpinteiro, muito perito em construções de máquinas e engenhos de madeira, trazendo às costas algumas ferramentas do seu ofício e nas mãos, algumas outras.
Levava assim a cruz de pai de numerosa prole, com a resignação que João nunca tivera…
Sabia que a cabeça do réu havia de ser afixada naquele lugar, mas ignorava que já o fora naquele mesmo dia. Era já noite escura quando passou pelo local e, enxergando confusamente a cabeça lá no cimo, transtornou-se-lhe a sua. Um arrepio de susto percorreu-lhe os membros todos. Eriçaram-se-lhe os cabelos e quase lhe sacudiram o chapéu da cabeça, conforme confessou depois.
O outro avô do padre Espanca, José Dias Pereira, costumava passar por aquele sítio para se dirigir à herdade do Pego da Moura, pertencente ao Mestre de Campo Luís António de Melo Lobo, de quem era escudeiro, deixou de seguir aquele itinerário, tomando a partir desse dia a estrada de Maria Henriques.
Quase toda a gente fugia da estrada da Portela de Évora com o horror daquele espetáculo, que ainda não tinha sido esquecido no final do século XIX. E não era por dó do réu. Era unicamente pelo terror que inspira a morte violenta, única pena capaz de conter os homens incorrigíveis na ladeira do crime.

VII

Correu o tempo. A carne do crânio do assassino foi-se desfalecendo. Derreteram-se os humores com o ardor do sol e correu o pingo pelo poste abaixo até deixar uma lostra negra no chão. Por fim, restava só a caveira alvejando ao longe, pois ninguém lhe tocava e as autoridades vigiavam o inteiro cumprimento da sentença.
Ainda assim descarnada, inspirava tanto ou mais horror do que antes. Quando o vento sudoeste soprava com certa rijeza, entrando por uma cavidade dos olhos e saindo por outra, dava o crânio assobios tão fortes que se ouviam em Vila Viçosa durante o silêncio da noite…
A avó paterna do Padre Espanca, Gertrudes Vicência da Rocha, disse ao neto que a ouvia muitas vezes no Rossio e nas Aldeias, quando à luz da candeia fazia serão de costura…

CÓPIA DO ASSENTO DE ÓBITO

Teresa de Jesus e seu filho José. – Aos vinte e sete dias do mês de Setembro de mil setecentos e oitenta e um anos, faleceu, sendo freguesa desta Freguesia de São Bartolomeu de Vila Viçosa, sem sacramentos nem testamento, Teresa de Jesus, natural da vila de Redondo, casada com João Paulo, o qual a levou enganada, sem motivo algum como o mesmo confessou e lhe tirou a vida nos coutos desta vila e juntamente com a de um filho de quase um ano de idade, por nome José, o qual fora baptizado nesta freguesia aos dezasseis dias do mês de Janeiro de 1781 e ficaram sepultados na Igreja de São João, extramuros desta vila. E por verdade fiz este termo que assino. Era ut supra. O Prior Frei Francisco Valério Carvalho[3].

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ESPANCA, Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa, 36 cadernos., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.



[1] Procurei por este pedestal em Fevereiro de 2019, mas não o consegui encontrar.
[2] Um dos acessos da Cerca Nova, um recinto fortificado que envolvia Vila Viçosa e que desapareceu quase por completo no século XIX. A Porta de São Sebastião ficava junto das actuais “Aldeias”, a sul do centro histórico
[3] Livro de óbitos de 1741-93, f. 365 v. que se acha no Seminário de Évora.


                                      Olivais da Toca do Lagarto, no caminho para Bencatel




                                       Ermida de São João, onde foram sepultadas as vítimas

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Doçaria Conventual Calipolense – Um Mundo a descobrir!


É secular a ligação de Vila Viçosa ao mundo dos doces conventuais. A história que identificamos em Vila Viçosa faz a ligação entre o açúcar que chegava do Brasil e a tradição doceira dos espaços conventuais.
Vila Viçosa tem uma larga tradição e história nesta categoria de receitas que engrandeceram a gastronomia e cuja fama se estendeu além-mar, também pela existência de numerosos conventos. A doçaria conventual tem como ingredientes de eleição o açúcar, as gemas de ovos e a amêndoa.
Estes doces conventuais de açúcar, gemas de ovos e amêndoas sempre estiveram presentes nas refeições que eram servidas nos conventos, mas apenas a partir do século XVI, com a divulgação e a expansão do açúcar, atingiram notoriedade.
Vila Viçosa primava pela excelência dos doces nas festividades oficiais. Foi notável, em 1571, a receção ao legado do Papa Pio V, o Cardeal Alexandrino, assim como o banquete servido a D. Sebastião, em 1573. A Duquesa de Bragança, D. Catarina (esposa do 6º Duque D. João I e filha do infante D. Duarte e de D. Isabel de Bragança), ofereceu em 1581 um faustoso banquete em Vila Viçosa ao Rei de Espanha e de Portugal, Filipe II[1].
A tradição dos doces conventuais tem portanto a possibilidade de se tornar uma imagem de marca de Vila Viçosa. Temos três elementos que me parecem fundamentais, com muito provável origem em Vila Viçosa: a tiborna, o bolo-duque e o sericá.

Da doçaria conventual calipolense tem ainda menção de destaque os “Peixes de Canela”, provenientes do Convento da Esperança e os “fartes” e “bolo celeste” do Convento de Santa Cruz. Este último convento produzia também os doces de pêssego e de ginja em potes de barro. No entanto, a competição das duas claustras era a nível dos rebuçados de ovo e das tibornas.[2]
Em homenagem às tibornas, o poeta calipolense Emídio Amaro, foi dedicado o seguinte soneto:
« Ó minha terra, por menos que fosses
Serias sempre grande em teus doces,
Milagre divinal de mãos patrícias![3]»


O Convento das Chagas foi fundado pelo 4º Duque de Bragança, D. Jaime em 1514. Foi entregue à Ordem de Santa Clara e a vida monástica teve o seu início em 1532, com oito freiras provenientes do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja, que trouxeram consigo o segredo das receitas.
Foi o mosteiro mais rico de Vila Viçosa, na medida em que a maioria das monjas provinha da melhor nobreza do Alentejo, o que permitia a instituição de rendas e tenças de valor muito significativo. A maioria das freiras tinha morada própria.
O Convento tinha capacidade para várias dezenas de monjas, tendo atingido no reinado de D. João V a população de 80 freiras. Foi a última casa monástica de Vila Viçosa, ficando na Casa de Bragança, depois da extinção das Ordens Religiosas em 1834[4].
Talvez devido á riqueza dos seus manjares, D. João III haja feito a mercê, em 1542, de “seis arrobas de açúcar por ano” e a razão tenha sido a mesma utilizada por D. João V, quando promoveu as obras de restauro neste espaço durante o seu reinado[5].
Para além da Tiborna, são provenientes deste convento o Toucinho-do-Céu, o Manjar das Chagas, o Toucinho dos Duques, das Biscoitinhas, as Fatias Duquesa, as Broas das Chagas e as Barrigas de Freira.[6]
Os mosteiros ou conventos de onde se conhecem mais doces foram, com certeza, os habitados pelas freiras da Ordem de Santa Clara, mais conhecidos pelas Clarissas.
O Real Convento de Nossa Senhora da Esperança de Vila Viçosa foi fundado pela Duquesa D. Leonor de Lencastre, que adquiriu o solar de Gonçalo Vaz Pinto em meado do século XVI. A primeira Abadessa Catarina Botelho, veio do Convento de Santa Clara de Elvas[7]. Deste espaço conventual são provenientes a Sopa Dourada do Convento da Esperança, as Tibornas de Ovos do Convento da Esperança, os Agostinhos, as Broas cobertas, os sequilhos de amêndoa e as trouxas-de-ovos[8].
No caso do Convento da Esperança de Vila Viçosa, a tradição manteve-se com outros doces, como as rosquilhas, os rosquetes, a abóbora e a cidra até à morte da última freira – soror Maria Carolina da Piedade, em 1905.
Descreve o Conde de Sabugosa que numa das últimas visitas da Rainha D. Amélia fez ao Convento, onde registou o apontamento do claustro no registo dos “Mes Dessins”, as religiosas quiseram presenteá-la com os bolos, os covilhetes de marmelada, boiões de compota, assim como o sericá[9].
Em todos os conventos calipolenses eram produzidas as cavacas de Vila Viçosa, cujo fabrico terá pertencido originalmente ao Padre Lobo, que as “cosia em folhas de couve para que ficassem frescas durante muito tempo[10]”.
Em relação ao Convento de Santa Cruz, da Ordem de Santo Agostinho (onde se encontra atualmente o Museu de Arte Sacra), são provenientes, o Manjar do rei, o Toucinho amendoado, as Fatias Reais, as Rainhas-Cláudias recheadas, o bolo das Freiras, os Bolos das Visitas e as Talhadas do Céu.[11] Este convento é também do início do século XVI, com as primeiras freiras a serem provenientes do Convento de Santa Mónica em Évora.[12]
No caso do sericá, a receita terá sido trazida por D. Constantino de Bragança, aquando da sua passagem pela India, depois de 1561. É muito provável que esta iguaria tenha sido trazida do Oriente por este ilustre calipolense, nomeadamente por algum dos seus copeiros. É provável que a origem do doce no contexto indiano tenha tido proveniência em Malaca[13]. Elemento da Sereníssima Casa de Bragança, D. Constantino (1528-1575) provavelmente nascido em Vila Viçosa, filho do quarto Duque D. Jaime, desempenhou o cargo de Vice-Rei da Índia, entre 1558 e 1561.
Em relação ao Bolo –Duque, trata-se de uma iguaria de amêndoa  que terá tido origem numa homenagem do chefe doceiro do Paço de Vila Viçosa ao Duque de Bragança D. Teodósio II por ocasião do aniversário, ou por motivo do matrimónio com D. Ana de Velasco y Girón, filha dos Condes de Haro, em 17 de Junho de 1603.
Quais as ideias que podem ser exploradas?
Aliar a História à Gastronomia, vertente equacionada como elemento fundamental nesta iniciativa de promoção de produtos locais, em iniciativas que podem decorrer em espaços conventuais. Explorar, investigar e recuperar antigas receitas conventuais com o “cunho” calipolense ou ligadas à história de Vila Viçosa pode constituir uma inovação
Com esta fundamentação histórica e as especificidades referidas, porque não criar um evento, uma imagem de marca, relativa aos doces conventuais, salientando as particularidades históricas e criar uma parceria com a Pousada D. João IV para a realização de uma mostra nos claustros do convento, com a participação de todos os empresários locais da restauração e hotelaria e cidadãos em geral?
Este evento podia ser associado a uma recriação histórica e, tendo em conta a ligação do Convento das Chagas (e dos restantes conventos) a esta questão, parece-me ser muito interessante avançar para esta possibilidade, sem necessidade de grandes investimentos. Temos os espaços, o saber e a origem de muitas receitas. Entre outras ideias, promover um concurso para o “Melhor Doce Conventual Calipolense”, através de um regulamento que especificasse quais os ingredientes a utilizar, assim como a forma de apresentação pode ser uma forma de angariar participantes e investigadores. O mesmo se poderia aplicar em relação aos licores, de modo a abrir a esfera de ação de participantes e públicos.
A organização de workshops e ateliers para adultos e crianças, com mestres doceiros locais, seria um complemento a esta iniciativa, assim como a edição de um folheto com as descrições e histórias de cada receita em particular. Promover a realização de showcookings sobre doçaria conventual, em parceria com o IEFP.
Apostar num divulgação a larga escala do evento a realizar, através de um vídeo promocional que integrasse os espaços conventuais e a elaboração das antigas receitas, seria outra das formas para dinamizar e atrair públicos. Por outro lado, seria possível dar visibilidade a espaços que normalmente se encontram encerrados (Claustro do Convento das Chagas, Claustro do Convento de Santa Cruz, Claustro dos Capuchos, dependências do Convento da Esperança)
Aliar a História com a Gastronomia podia representar um passo qualitativo no que concerne ao desenvolvimento turístico local. Há um mundo de potencialidades a explorar, em conjugação com espaços históricos que têm condições para acolher este tipo de eventos (Convento das Chagas, Convento da Esperança e Convento de Santa Cruz). Apostar na divulgação e na participação da comunidade, penso que seria uma forte imagem de marca, associada a Vila Viçosa.




[1] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[2] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[3] José Emídio Amaro (1901-1985, foi um investigador da história calipolense, que descreveu carinhosamente Vila Viçosa nos seus poemas e livros
[4] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[5] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[6] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[7] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[8] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[9] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[10] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[11] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[12] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[13] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49