terça-feira, 28 de novembro de 2017

CALLIPOLE SUBTERRÂNEA - capítulo II


Continuamos na pesquisa e identificação das antigas cisternas e aquedutos subterrâneos de Vila Viçosa! Hoje mais um “submundo” no centro histórico, que revela todo o engenho relativo ao armazenamento de água.


Neste caso, temos uma mina escavada na rocha, que faz o aproveitamento das águas pluviais, através de um sistema de recolha de água. Começou a encher, com as chuvas de hoje! Curiosas são também a abóbada e a janela de respiração. Tem cerca de oito metros de profundidade. Penso tratar-se de uma estrutura do século XVII. Terá alguma conexão com outras cisternas da envolvente? Aparentemente não, mas estamos a tentar descobrir! 

A grande dificuldade sentida no âmbito deste levantamento tem a ver com a falta de autorização de alguns proprietários para visitas às diferentes cisternas existentes. A interdição de acesso aos espaços tem muitas vezes a ver com a falta de condições de segurança e com a necessidade de proteger estes espaços. Temos a certeza que existem mais estruturas semelhantes no centro histórico de Vila Viçosa e continuamos a desenvolver este trabalho, no sentido de encontrar mais aquedutos e cisternas na envolvente do Paço Ducal e do Castelo.






















terça-feira, 21 de novembro de 2017

A LENDA DA VILA VIÇOSA

Embora já esteja exaustivamente estudada a origem histórica do nome de Vila Viçosa, esta é uma das lendas mais ingénuas e cativantes da tradição oral portuguesa, e que explica, bem à sua maneira, terna e simples, não só o aparecimento dessa designação tão sugestiva para uma terra de prados verdejantes e flores atraentes, mas também a história lendária da própria Confraria de Nossa Senhora de Vila Viçosa...
Corria o ano de 1523. Entre os seus inúmeros figurantes, destacaremos agora um jovem pastor castelhano, de nome Fernando.
Fernando era um rapazinho estranho. Alto, magro, de olhos grandes e escuros, modos repousados e olhar sereno.

A devoção à Virgem constituía o seu principal pensamento. Gostava de trabalhar para não ser pesado a ninguém, já que o destino o fizera órfão desde os cinco anos de idade. Porém, nesse ano de 1523, como em Espanha não arranjasse trabalho, resolveu emigrar para Portugal. E, aqui, Fernando em breve entrou ao serviço de um rico criador de gado. A sua tarefa era fácil: apascentar rebanhos naquelas terras de Além Tejo, tão ricas e abundantes em pastos. 

Os meses correram serenos. Fernando adaptara-se perfeitamente aos nossos costumes. Porém, certo dia, ao voltar do campo, Francisca, a jovem Chiquinha, filha do patrão, chamou-o de parte, com ar de segredo.

Fernando corou vivamente. Era demasiado tímido e habituara-se a viver isolado, sem contacto com os rapazes ou raparigas da sua idade, apesar dos seus dezoito anos.
Francisca sorriu-lhe, afável, chamando-o de novo: 

— Fernando! Anda aqui! Preciso falar-te. 

O rapaz perguntou, a medo: 

— Que desejais, menina Chiquinha?

Ela tomou uns ares de mistério. 

— Ouvi contar umas coisas e quero saber a verdade! 

— Se souber responder-vos... 

— Só tu podes responder-me. 

— Eu?

— Sim, tu! 

E aproximou-se mais do jovem, segredando-lhe quase: 

— Que fazes na campina?

O rapaz respondeu, mais sereno
:
— Levo o gado a pastar. É tão viçosa esta erva!... 

A rapariga insistiu:

— E mais nada?

Ele encolheu os ombros. 

— Fico por ali, todo o dia... 

Francisca baixou ainda mais a voz, a reforçar o tom de segredo.

— E não te aconteceu nada de estranho? Diz a verdade! 

Fernando voltou a corar. 

— Enfim... eu tenho um altar de pedras e... 

A jovem interrompeu-o: 

— Ah, isso já condiz com o que me contaram! 

— E que foi? 

Ela sorriu mais e interrogou, intencionalmente: 

— Sabes? Disseram-me que levas o dia a adorar uma imagem da Virgem, mas que não é a da capela. Trouxeste-a de Espanha? 

O pastor baixou o olhar. 

— Não, menina Chiquinha. 

— Então?

— Encontrei-a aqui no vale... 

A jovem pareceu ficar perplexa, mas logo mais entusiasmo pôs na voz: 

— No vale? Tens a certeza do que afirmas? 

— Sim. Estava cheia de terra!... 

A conversa ganhou calor. Fernando começara também a animar-se. Prosseguiu, sorrindo já, num à-vontade de colegial: 

— Se a vísseis! Mas eu limpei-a com o lenço e ficou lindíssima. Depois, fui buscar pedras, construí um altar e lá está ainda. 

A jovem entusiasmou-se: 

— Fernando! Eu posso vê-la?

— Quando quiser. 

— Então, amanhã, irei ter contigo ao campo! 

E assim aconteceu. Ardendo em curiosidade, a Francisca parecia-lhe que as horas nunca mais passavam. Levantou-se mais cedo e, iludindo a vigilância dos pais, foi reunir-se ao jovem pastor. 

Fernando orava aos pés da Virgem, quando Francisca chegou. Nem deu pela presença da jovem. Esta também não teve coragem para o interromper. E esperou em silêncio que o pastor a pressentisse. 

Quando deu pela presença de Chiquinha, Fernando mostrou-se confuso. 

— Estáveis aqui há muito? 

Ela sorriu-lhe. 

— Sim, há já muito tempo, Fernando. 

E num tom de encantamento: 

— Como tu sabes orar! O teu rosto parecia diferente.
O jovem mostrou-se enleado. Olhou a erva do chão, fresca, viçosa e bela. Sentiu que devia dizer algo que contradissesse essa afirmação:

— Ora… não pense assim... Eu nada sei. Nada valho! 

E sorrindo, de súbito iluminado por uma estranha ideia, perguntou: 

— Vamos rezar juntos? 

Francisca olhou o céu carregado de nuvens. Meneou a cabeça. 

— Não me importava, mas vês aquelas nuvens? Vai haver trovoada e aqui não há abrigo.
Tenho de voltar já para casa. 

O pastor retorquiu: 

— Já não chegareis a tempo!

— Então que vou fazer? Valha-me Nossa Senhora! 

Ele sorriu, cheio de confiança.

— Não tenhais medo. Ficai aqui, porque neste local não passará a tempestade. 

A jovem olhou-o com espanto. 

— Pode lá ser! Ela não tarda! Estão já a cair os pingos grossos que antecedem as grandes trovoadas! 

— Sentai-vos nesta pedra. Eu vou juntar o gado à nossa volta.
Vendo-o afastar-se, o medo aumentou. 

— Fernando! Não me deixes sozinha!... Tenho tanto medo! Para que saí eu de casa? 

Já de longe, o rapaz gritou-lhe: 

— Ficai aí! Eu volto já! 

A tempestade aproximou-se rápida. Faíscas riscavam o céu de chumbo em todas as direções. Parecia um inferno de luzes e ruídos. Ribombavam os trovões, acordando ecos pela serra de Borba. A chuva começara a cair com força implacável, alagando tudo...
Só nesse pedaço do vale, como oásis no deserto, a terra continuava enxuta!
Toda curvada sobre a pedra improvisada em banco, Francisca estremecia a cada relâmpago que acendia o firmamento.

Perfeitamente calmo, o pastor olhava a imagem sobre o altar que ele próprio havia construído. Francisca mostrava-se rendida. 

— Fernando! Que estranho é tudo isto! Por muitos anos que viva nunca mais esquecerei quanto se está a passar aqui. Até parece que os animais têm compreensão! Todos reunidos a nossos pés e sem fugirem! 

O pastor olhou a companheira.

— A chuva… não cai sobre nós! 

— Mas isto é um milagre do Céu! 

A voz do jovem tornou-se suave. 

— É milagre da Virgem! 

Francisca olhou de novo a imagem sobre o altar e caiu de joelhos.

— Fernando! Vamos rezar! 

Perto, caía a chuva, espapaçando a terra. No firmamento, continuavam a fuzilar relâmpagos, numa apoteose de luz...
Quando a tempestade passou, horas depois, Fernando e Francisca voltaram para casa. E só no caminho se deram conta da extensão da violência dos elementos em fúria.
Ao verem-nos juntos e absolutamente enxutos, como se a chuva não tivesse caído sobre eles, a murmuração começou a surgir. A tia Ana do Casal ficou a cismar. 

— Onde diabo estiveram eles metidos todas estas horas? 

A senhora do Juncal, quando os viu passar, abriu os olhos num espanto e chamou uma das servas. 

— Maria! Estás a ver? A chuva não quis nada com eles. E estiveram juntos... 

Maria riu, maliciosa. 

— Os pombos sabem resguardar-se...

— Mas a mãe saberá disso? Ele é um pastor! Que pouca vergonha! 

E a má-língua em breve tomou vulto, até que o pai de Francisca resolveu ir falar com ela.
— Anda cá, rapariga!

A voz dele era dura. A expressão fechada. Francisca amedrontou-se. 

— Que tem, meu pai?

Ele gritou: 

— Preciso saber por onde andaram ontem, tu e o Fernando, durante a tempestade! 

A jovem baixou os olhos. O pai gritou mais ainda:
 
— Vamos! Responde! 

O coração de Francisca começou a bater com mais força. 

— Meu pai... Eu e o Fernando estivemos no vale...

— No vale? Como? Onde? Explica-te! Onde se recolheram da chuva? 

— Estivemos ao ar livre, pai! 

— Mentes! São ambos dois mentirosos! Olha que ele já levou a sua conta e tu vais apanhar também, se não dizes a verdade! 

Aflita, a jovem perguntou: 

— Que fizeram ao Fernando?

— Isso não te diz respeito! Mas fica sabendo que não ando a trabalhar como um moiro para que um mariola qualquer venha de outras terras desonrar o meu nome!
Francisca arriscou, a medo.

— Mas, meu pai! Nós não fizemos nada de mal! 

O homem cresceu para ela. Deu-lhe um tremendo safanão, que a fez perder o equilíbrio.
A rapariga caiu. Mas o pai continuou a gritar. 

— Minha desavergonhada! Ainda tens descaramento para dizeres que não fizeram mal!
Foges de casa, vais ter com um homem ao campo, voltam ambos para casa muito contentes e enxutos… e não fizeram mal!... Isto não lembra ao diabo!

Francisca levantou-se, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.
— Não fale assim, meu pai... Deus pode castigá-lo! Este segredo não é só meu...
O lavrador cerrou os dentes. 
— Parva! O segredo não é só teu, claro! Também é dele… e agora de toda a gente!

Francisca tremia toda. Os soluços começaram a cortar-lhe a respiração. O pai segurou-lhe num braço, com brutalidade. 

— De que se trata, então? Por que fugiste para o campo? 

Francisca arfava. Balbuciou a medo: 

— Queria… ir ver a Nossa Senhora!

A surpresa ficou estampada no rosto do lavrador. 

— Ir ver o quê? 

A jovem repetiu, sempre chorando: 

— A Nossa Senhora que ele encontrou! Arranjou-lhe um altar e lá rezámos juntos... 

A expressão do homem mostrava desorientação.

— Que invenção foi essa agora? O que eu preciso saber é a razão porque nem sequer molharam as roupas quando aqui até houve cheia! Onde estiveram? 

A rapariga serenou um pouco mais. Uma força interior ajudava-a na sua defesa.

— Pai! Embora não acredite, asseguro-lhe que estivemos em campo aberto, nós e o gado, junto de Nossa Senhora. Se visse, pai!... Como era estranho ver correr a água à nossa volta e nós sem frio e sem chuva! 

O homem franziu as sobrancelhas. Sentia necessidade de protestar, mas fazia-o agora, sem saber porquê, de maneira menos rude. 

— Estás louca, rapariga! 

Ela aproveitou a calmaria e pediu carinhosamente: 

— Pai! Venha connosco ver a imagem que o Fernando encontrou! Venha, pai! 

E o entusiasmo de Francisca era tal, que o lavrador achou por bem ir ele próprio certificar-se da veracidade das palavras de sua filha.


Quando lá chegaram, viram o altar, simples e sereno como um símbolo de fé a espalhar luz no vale. Porém, a imagem da Virgem havia desaparecido. Aflita, Francisca começou a olhar em todas as direções, chamando alto: 

— Fernando! Fernando? Para onde levaste a Senhora? Precisamos dela, Fernando! Onde estás, Fernando?

Mas Fernando não respondia. Não podia responder. Tinha fugido para Espanha, levando consigo a imagem da Virgem. 

Atarantado com as más-línguas do povo, que duma conversa inocente soubera concluir monstruosidades, o jovem pastor ausentara-se sem mesmo procurar despedir-se de Francisca. O facto exasperou o lavrador, que participou às autoridades espanholas a fuga de Fernando, mandando-o prender.

Foram encontrá-lo em Córdova, junto das montanhas Gamonesas. Estava de joelhos, perante uma linda imagem da Virgem! 

Sob prisão, voltou o jovem pastor para Portugal e de novo foi interrogado pelo pai da Francisca.
Defrontaram-se então a soberba e a humildade. O lavrador perguntou: 

— Por que fugiste? 

A resposta veio pronta e serena:

— Não sei bem... Creio que me assustei. De repente, vi tudo transformado à minha volta. Tudo modificado... As palavras com sentido diferente... As pessoas só a pensarem mal... E fugi! 

— E que houve entre vocês dois, tu e a minha filha? 

— Nada de mal. Conversámos… rezámos juntos... 

— Juras? 

— Dou a Mãe Santíssima como testemunha! A menina Chiquinha é uma boa e pura rapariga. Até é pena que venha a cair nas mãos de um homem rude, como muitos que andam por aí!

— Achavas melhor que fosse contigo, não?

O rapaz fez um olhar de espanto. 

— Mas eu não pretendo casar com a vossa filha! 

O lavrador voltou a encolerizar-se. As veias incharam-lhe no pescoço largo e sanguíneo: 

— Agora desdenhas, não é assim? Agora! Mas olha que, se os outros murmuram dela, só tu és o culpado!

O rapaz mostrou-se aflito.

— Que Deus me perdoe, então! Não tive o menor desejo de a deixar mal! Eu tinha o meu segredo. Ela é que o descobriu... 

— Mas qual segredo, homem? 

— O da imagem da Virgem que eu encontrei. Desde então consagrei-me inteiramente à sua devoção. 

O pai de Francisca olhou-o com desprezo. Desprezo onde havia muito de deceção.

— Some-te da minha vista! Não és homem, nem és nada! És um burlão. Levaste para Espanha uma coisa que encontraste em Portugal e, portanto, nos pertence!
Fernando não alterou a voz. Meneou apenas a cabeça e olhou o antigo patrão com ar de tristeza.

— Que Deus vos perdoe essas ofensas! Por mim, não vos quero mal. Mas eu não roubei nada. A «coisa» de que falais é a imagem da Virgem que eu encontrei. Pertence-me.

— Mas encontraste-a em terras de Portugal! Portanto deve ficar aqui!
Fernando olhou bem de frente o seu interlocutor. Olhou-o, não como habitualmente fazia, com o olhar fugidio. Olhou-o de homem para homem, embora sem arrogância, nem desprezo.

— Senhor! Se todos tratassem bem a imagem da Virgem, eu faria o sacrifício de me separar dela. Mas mal entrei em Portugal, soube que os senhores tinham destruído o altar que eu construí, pedra por pedra, com tanto amor... Sinal que fiz bem em levar a imagem comigo. Quando souberem compreender a Sua infinita bondade e dar apreço à Sua companhia, então, Ela descerá de novo dos Céus sobre as terras de Portugal. Mas então não deem ouvidos a intrigas e maledicências. Ajoelhem de alma tranquila e agradeçam-Lhe a Sua visita! 

Fernando calou-se um momento. O lavrador olhava-o, perplexo, sem poder compreender por que razão um simples pastor se exprimia assim tão bem...
O rapaz voltou a falar.

— Adeus, senhor! Que a Virgem proteja sempre a vossa filha, bem digna de uma vida sã!
— Para onde vais?

— Vou-me embora.

— E a imagem? Fica connosco?

— Creio que não. 

— Já a levaram para o campo! 

— E onde está o altar que lhe construí? 

— Faremos outro, melhor... Mais rico! 

— Pois seja o que a Virgem quiser! Adeus... E tratai bem a vossa filha!

A tarde morria na linha larga do horizonte. Uma tarde serena, em que o ocaso punha manchas de sangue no firmamento. 

O lavrador ficou como que preso ao solo, vendo a figura esbelta do pastor afastar-se vagarosamente. E quando o seu contorno não era mais que um pequeno ponto a caminho da fronteira, alguém veio acordá-lo daquela espécie de torpor. 

— Senhor! Senhor! A imagem da Virgem desapareceu misteriosamente! Estávamos ao pé dela e de repente... Já não a vimos! 

O lavrador sorriu então, pela primeira vez desde que tudo aquilo acontecera.
— Sei onde a poderemos encontrar!

— Onde, senhor? 

— Nas montanhas de Córdova! 

Um frio estranho atravessou-lhe a cabeça. Continuava a olhar fixamente, no horizonte, o pequenino vulto de Fernando a afastar-se em direção a Espanha
.
Ao vê-lo assim, como paralisado, um dos criados inquietou-se.
— Que tendes, senhor? Estais doente?

Sempre sorrindo, o lavrador abanou a cabeça.

— Nunca me senti tão bem! 

E começou a andar em direção a casa...

Daí a tempos, o lavrador voltou às montanhas de Córdova. E encontrou novamente Fernando ajoelhado aos pés de uma linda imagem da Virgem.
A conversação entre ambos foi bem diferente daquela em que se tinham defrontado nas terras de Além Tejo, em Portugal. 

O pai de Francisca parecia outro. Mais calmo. Mais crente. Mais humano.
Convenceu o jovem Fernando a que o deixasse levar a imagem e o acompanhasse. Depois ajudado por muitos outros bons cristãos, ergueu uma capelinha bonita em honra de Nossa Senhora. Uma capelinha de flores. Rodeada de flores. De flores viçosas...
E daí ter-se chamado ao lugar o Vale Viçoso, primeiramente; e depois a Terra Viçosa; e por fim, quando a povoação cresceu em importância, Vila Viçosa. E foi também em recordação do moço pastor Fernando e da sua maravilhosa aventura, que se fundou em Córdova a Confraria de Nossa Senhora de Vila Viçosa.

Fontes

MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 333-340






sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A JUDIARIA DE VILA VIÇOSA

A Judiaria de Vila Viçosa estava situada por detrás da capela-mor da primitiva Igreja de Santa Maria do Castelo (Santuário de Nossa Senhora da Conceição), na almedina do Castelo, conforme se pode ver na imagem. Em 1618, existiam dez ruas dentro das muralhas medievais, algumas delas pertencentes ao antigo aglomerado populacional judaico. No final do século XIX, desapareceram as últimas casas do antigo bairro judeu. As antigas casas da Judiaria foram demolidas, para a construção do novo cemitério municipal (o atual), no ano de 1886.


No lado esquerdo da imagem, podemos ver a Ermida de São Domingos.


terça-feira, 14 de novembro de 2017

A BRUXA DO CASTELO DE VILA VIÇOSA

Vila Viçosa, 1886

Quando a velha Maria Gertrudes, criada de recados da Senhora Nunes que morava na Corredoura (Rua Florbela Espanca), percorria as ruas e vielas para fazer algum mandado, os insultos surgiam dos postigos dos portados, das janelas e das lojas entreabertas…
- Lá vai a Bruxa! Lá vai da Bruxa do Castelo! Olha a desavergonhada da velha!
A má fama é como a nódoa de azeite. Cai e espalha-se imediatamente. E nunca mais se lava…A que um dia caiu sobre aquela pobre mulher de tal modo alastrou que não houve tempo que a desfizesse…
Alguém vira e logo propalara que ela, certa noite, fora de horas, quando tudo era escuridão, estava a agitar uma candeia acesa, entre as ameias das muralhas do Castelo, que dão para o lado da Terrugem, Vila Boim e Elvas, mesmo junto do cemitério (onde havia sido o antigo Bairro dos Judeus).
Esse alguém afirmara ainda que a surpreendera em trajes negros, com um pequeno xaile de lã na cabeça e uma cruz no peito. Quando lhe perguntaram o que fazia ali naquela noite escura e fria, ela respondeu:
- Estou à procura da única tesoura que tenho e que perdi esta tarde!
A história, que não convenceu o povo imaginoso, rapidamente foi contada e todos ficavam aterrorizados com a sua presença.
Indiferente aos boatos, lá ia ela, todos os dias, levar as filhas da patroa ao Colégio, ao lado da Igreja de São Bartolomeu, buscar uns sapatos em amanho, ou comprar umas nabiças no mercado. Olhos pesados e tristes, numa face enrugada envelhecida pelos anos, cumpria escrupulosamente as suas obrigações, arrastando as chinelas de pano grosseiro. O que se dizia dela na Vila não a preocupava. Maria Gertrudes, mulher honrada e boa que sempre fora, de vida séria e honrada, limitava-se a uma mudez confrangida, perante as acusações de que era alvo.
Quando moça, bonita e pretendida, fora uma excelente criada de servir, Casou ainda nova, à face da Igreja e honrara o homem de quem se enamorou. Do matrimónio nasceu um filho, o seu bem mais precioso.
Ao invés de arreliar-se com as acusações, evocava na sua memória as velhas casas fidalgas onde servira, do Tomé de Sousa, dos Machados ou dos Matos Azambuja. Lembrava-se dos alegres dias do seu casamento, dos arraiais dos Capuchos e do São Mateus e das “saias” que cantava por esse tempo…
O alvoraçado contentamento daquela hora em que teve o seu primeiro e único descendente, também era recordado. Depois da morte inesperada e prematura do seu marido, o seu José de Pardais, que um dia ficara debaixo das rodas da carreta que conduzia, o filho, Manuel de Pardais, passou a ser a sua única preocupação. Casado com a Maria do Alandroal, vivia com esta na rua da Corredoura…
Viúva e só, depois do casamento do Manuel, passou a viver numa velha casa com restos góticos do Castelo (na Rua de Estremoz), de onde saia todos os dias, pontual e cumpridora, para tratar dos seus deveres. Entretinha a fome com uma côdea de pão duro e duas azeitonas tiradas da tarefa, às quais se juntava a humilhação das acusações de que era alvo quando saia à rua.
- Bruxa! Pobre de mim que não sei o que isso é! – dizia para com os seus botões.
Maria Gertrudes não era, nem nunca fora bruxa. Era tão somente uma pobre mulher que levava a vida a trabalhar, na ânsia de ganhar as sopas…Se permitia que assim lhe chamassem, era porque receava algo muito pior…
Os homens que labutavam nesta terra de mármore e de olivais, ganhavam a vida com a foice e a gadanha nas mãos, tratando das mondas, da cortiça e da azeitona. Nesse tempo da miséria, deitavam contas à vida e lembravam-se dos contos que ouviam à lareira nas noites invernosas, sobre libras e alqueires de prata, alcançados no contrabando da raia….
Os acarretos de mercadorias clandestinas trouxeram para alguns proventos certos e fortunas consideráveis.
E a aliciante tentação do contrabando apoderava-se de tal forma desses espíritos, que criava nos povos fronteiriços a ideia de um inofensivo e inocente passatempo, apesar deste ser um crime punível. A pobreza e a fome assolavam o Alentejo e afligiam muitos calipolenses…  A miséria despoletava um intenso vaivém dos dois lados da fronteira, em que os mais destemidos procuravam a sobrevivência.
Indiferentes ao perigo, os contrabandistas, ardentes, fogosos e apaixonados, verdadeiros heróis desse tempo, arriscavam nas aventuras, para fugirem às balas certeiras das autoridades…
Pois o filho de Maria Gertrudes, o Manuel de Pardais, tornou-se num desses homens.
Queria fazer fortuna pelo contrabando, trazendo coisas de Espanha que se destinavam à vila e que fazia nela entrar durante a noite. O bom nome de que o Manuel de Pardais disfrutava, afastava qualquer suspeita.
No Castelo, onde vivia Maria Gertrudes, as vizinhas desconfiadas não lhe dirigiam a palavra. Entre os que ai moravam, havia dois guardas-fiscais que só paravam na sua casa do Castelo, paredes meias com a dela, nas horas de folga do seu insistente trabalho de sentinelas vigilantes da fronteira com Espanha.
Mas eles, como os outros, se reparavam na vizinha, era apenas para a condenarem pelo seu triste fado, para lhe fazerem as figas destinadas a afugentar o mau-olhado e excomungar o mal de que dai pudesse resultar… No verdadeiro e único motivo do facto que dera origem à atribuição do nome de bruxa, ninguém acertava. E ele existia…
O filho de Maria Gertrudes, metido no contrabando, corria muitas noites os maiores riscos e ela, por não conseguir desviá-lo da vida aventureira que levava, sofria em silêncio. Tinha que ser, contra a sua vontade, sua cúmplice, auxiliando-o como podia, nas informações a respeito dos guardas-fiscais, seus vizinhos, livrando-o assim das esperas ou caçadas que estes faziam a quem se dedicava àquela prática ilícita.
Para que o filho pudesse entrar livremente em Vila Viçosa com os pesados fardos de tabaco e outras mercadorias, Maria Gertrudes ia, durante a noite, ao frio e ao calor, no verão ou no inverno, conforme combinação prévia, dar-lhe das ameias do Castelo, virada para as terras de Espanha, o sinal de que os guardas tinham regressado a casa.
A horas mortas, erguia-se da cama e, de forma lenta e cautelosa, com o coração triste e em sobressalto, lá ia até á muralha, agitar a candeia acesa, dando conta ao filho que podia entrar na vila sem receio.
Tudo fazia para evitar que Manuel fosse preso ou morto e os momentos de angústia era constantes. Maria Gertrudes vivia apavorada e cheia de tristeza…Mas jamais deixou de acudir o seu filho.
E foi por esse motivo, bem diferente do que se imaginava, que foi surpreendida por uma vizinha, na muralha, com a candeia na mão e um lenço de lã posto sobre a cabeça.
Dizendo que tinha ido procurar uma tesoura, o argumento não foi eficaz… Assim se criou a lenda da bruxaria, tecida à volta da pobre e velha viúva, triste, infeliz e sem fortuna… Assim cresceu a ideia de que Maria Gertrudes falava com o Diabo à meia-noite, na muralha do Castelo.
Manuel de Pardais foi muito tempo lembrado por ser um contrabandista destemido e arrojado. Tinha a força de Hércules e a matreirice de uma raposa, para fugir a tempo da guarda…. Enquanto havia trabalho na azeitona ou na labuta das herdades, Manuel não se negava, pois não era um homem de má condição. O sangue dos seus chamava-o para essa luta pelo pão de cada dia. Na época de crise, sem mondas, nem ceifas, amanhava os sapatos velhos ou limpava a caçadeira.
Continuava a ser, no pensar de todos, o trabalhador infatigável e talvez por isso, a sua outra atividade não levantasse suspeitas. Todas as manhãs partia para o trabalho e de lá voltava á noite. Quem o via regressar, pensava que ele ia encontrar o justo repouso das suas fadigas.
Mas na verdade, partia sempre para as missões arriscadas, de que se incumbia às escondidas: conduzir os fardos pesados do contrabando que alguém deixava em sítio previamente combinado, que ia buscar e depois entregava na vila, em casa de confiança. Percorria os campos de Alburquerque a Olivença, entrando depois por Juromenha, ao atravessar o Guadiana….
A fuga às brigadas de carabineiros espanhóis e da Guarda Fiscal portuguesa quando se faziam incursões no interior do território espanhol em plena noite, de carga às costas que variavam entre os 25 e os 40 quilos, e ao longo de distâncias que poderiam atingir os 60 quilómetros, exigia indivíduos física e mentalmente dotados.

Mal iluminada, escassamente pontuada de candeeiros de petróleo que em noites de luar não se acendem, Vila Viçosa, no silêncio das noites, parecia dormir. Nem vozes, nem passos. O sossego dominava. E lá partia o Manuel de Pardais, pelo muro da Tapada Real, para um lugar só por ele conhecido, para trazer os fardos do contrabando…
Contrabandear significava correr grandes perigos. O afogamento, na travessia de rios e ribeiras, durante o transporte noturno em noites e madrugadas invernosas de chuva e frio, era um deles. Também havia o risco de ser preso. E os tiros, por vezes certeiros…
O contrabando foi, ao longo de séculos, o sustento adicional, para muitas famílias que não conseguiam suprir as suas necessidades no trabalho agrícola.
Desse tempo restam as memórias e os testemunhos das invulgares personagens que mantiveram um permanente jogo do gato e do rato no desempenho dos respetivos papéis: os que viviam do contrabando e aqueles que faziam valer a legalidade.
Esta história parece imaginada, mas foi vivida na realidade e ensina-nos que devemos tentar ser justos nos juízos que formulamos sobre os outros. Nem tudo o que parece, é…
A dor de Maria Gertrudes pela vida paralela do filho, mostra-nos que o coração de Mãe é sempre condescendente e carinhoso. A má fama que criou e que se propagou pela Vila Viçosa de então, ignorou o seu drama íntimo. Dai que o autor tivesse tido a necessidade de o dar a conhecer, para que algum ensinamento ou proveito possa vir daí a ser encontrado…

Este é um resumo e uma adaptação do conto “A Bruxa do Castelo de Vila Viçosa”, obra escrita por Celestino David, para a Livraria Escolar de Vila Viçosa (propriedade de D. Joana Ruivo, na Rua Florbela Espanca), em 1984, nas comemorações do seu 25º aniversário. Esta edição contou com desenhos do pintor Armando Alves.

-Agradeço à D. Maria de Lurdes Gonçalves (84 anos), nascida na Freguesia de Pardais, ao Dr. Nelson Rebola e à Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, pelo apoio prestado.



domingo, 12 de novembro de 2017

O FORTE DO CONDE


Lugar de referência na freguesia de São Romão, foi uma fortificação militar de grande importância geoestratégica no âmbito da Guerra da Restauração. A proximidade com o Rio Guadiana, com Espanha e a importância agrícola e populacional, tornaram o Forte do Conde num ponto da resistência portuguesa no âmbito deste conflito do século XVII.

A sua história liga-se com o Oriente, através da figura de D. Francisco Lobo, capitão-mor da esquadra do Vice-Rei da Índia, D. Francisco da Gama (bisneto de Vasco da Gama, 4º Conde da Vidigueira e que cumpriu, pela segunda vez, a função de Vice-Rei entre 1622 e 1628). A Sé de Goa cruzou-se com o legado do Forte do Conde, num cenário de refregas com árabes e hindus pelos mares distantes do Índico. A fundação da Capela de Nossa Senhora dos Remédios no Forte do Conde, foi o resultado, anos mais tarde, dessa curiosa e improvável relação.

No século XVIII, no reinado de D. João V, passou para a posse de Gomes Freire de Andrade, 1º Conde da Bobadela, Governador e Capitão-General do Brasil.

Extraordinariamente conservado nos nossos dias, o Forte do Conde preserva essa memória histórica, testemunho vivo de um passado distante, mas sempre presente!





sexta-feira, 10 de novembro de 2017

SALA DO CAPÍTULO DO CONVENTO DA ESPERANÇA

O Convento de Nossa Senhora da Esperança pertencia à Ordem de Santa Clara e foi criado em 1570. O primitivo edifício era constituído por três corpos, com um claustro central de nove tramos com arcos redondos, infelizmente já desaparecido. As antigas dependências conventuais foram muito alteradas após o encerramento definitivo do convento, em 1876. É nesta data que é desmanchado o claustro. As imagens que apresento são da Sala do Capítulo, um dos espaços mais importantes do Convento. Trata-se de uma sala de grandes dimensões (6 metros de largura, por 12 de comprimento), que funcionou, em meados dos anos 80 do século XX, como celeiro.
Este espaço estava ornamentado com pinturas a fresco e abóbada de tijolo com trabalhos de estuque decorado, inseridos numa estrutura de losangos, com a representação de grotescos, que seria importante recuperar.
Este tipo de decoração erudita é um outro sinal da importância da Casa de Bragança no âmbito da cultura e da arte em Vila Viçosa, sobretudo a partir do século XVI.

FONTE :

SILVA, Hélia, “Três programas de estuque relevado em Vila Viçosa”, Revista Monumentos, nº 27, IHRU, 2007.

















terça-feira, 7 de novembro de 2017

Manuscritos de Florbela Espanca

Em boa hora, a Fundação da Casa de Bragança avançou em Novembro de 2017 com a publicação de dois manuscritos da poetisa calipolense Florbela Espanca, através de uma edição fac-simile, com a coordenação da Sr.ª Diretora do Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, Dr.ª Maria de Jesus Monge.

 A transcrição e a introdução desta obra estiveram a cargo das Professoras Ana Luísa Vilela e Maria Lúcia Dal Farra, grandes especialistas na temática “florbeliana”. Foram também estas duas estudiosas que analisaram e comprovaram a autenticidade desta documentação, adquirida recentemente pela Fundação da Casa de Bragança.


A edição destes dois contos (o Dominó preto e o regresso do filho) como que “ressuscitou” a memória da Poetisa em Vila Viçosa. Espero que este seja mais um contributo para o projeto de criação da Casa-Museu de Florbela Espanca, que tenho defendido acerrimamente. Para além do espólio documental, temos também identificadas várias coleções e objectos que pertenceram a Florbela e que poderiam constituir um núcleo importante no âmbito deste projeto!