Vila
Viçosa, 1886
Quando
a velha Maria Gertrudes, criada de recados da Senhora Nunes que morava na
Corredoura (Rua Florbela Espanca), percorria as ruas e vielas para fazer algum
mandado, os insultos surgiam dos postigos dos portados, das janelas e das lojas
entreabertas…
-
Lá vai a Bruxa! Lá vai da Bruxa do Castelo! Olha a desavergonhada da velha!
A
má fama é como a nódoa de azeite. Cai e espalha-se imediatamente. E nunca mais
se lava…A que um dia caiu sobre aquela pobre mulher de tal modo alastrou que não
houve tempo que a desfizesse…
Alguém
vira e logo propalara que ela, certa noite, fora de horas, quando tudo era
escuridão, estava a agitar uma candeia acesa, entre as ameias das muralhas do
Castelo, que dão para o lado da Terrugem, Vila Boim e Elvas, mesmo junto do
cemitério (onde havia sido o antigo Bairro dos Judeus).
Esse
alguém afirmara ainda que a surpreendera em trajes negros, com um pequeno xaile
de lã na cabeça e uma cruz no peito. Quando lhe perguntaram o que fazia ali
naquela noite escura e fria, ela respondeu:
-
Estou à procura da única tesoura que
tenho e que perdi esta tarde!
A
história, que não convenceu o povo imaginoso, rapidamente foi contada e todos
ficavam aterrorizados com a sua presença.
Indiferente
aos boatos, lá ia ela, todos os dias, levar as filhas da patroa ao Colégio, ao
lado da Igreja de São Bartolomeu, buscar uns sapatos em amanho, ou comprar umas
nabiças no mercado. Olhos pesados e tristes, numa face enrugada envelhecida
pelos anos, cumpria escrupulosamente as suas obrigações, arrastando as chinelas
de pano grosseiro. O que se dizia dela na Vila não a preocupava. Maria
Gertrudes, mulher honrada e boa que sempre fora, de vida séria e honrada,
limitava-se a uma mudez confrangida, perante as acusações de que era alvo.
Quando
moça, bonita e pretendida, fora uma excelente criada de servir, Casou ainda
nova, à face da Igreja e honrara o homem de quem se enamorou. Do matrimónio
nasceu um filho, o seu bem mais precioso.
Ao
invés de arreliar-se com as acusações, evocava na sua memória as velhas casas
fidalgas onde servira, do Tomé de Sousa, dos Machados ou dos Matos Azambuja.
Lembrava-se dos alegres dias do seu casamento, dos arraiais dos Capuchos e do
São Mateus e das “saias” que cantava por esse tempo…
O
alvoraçado contentamento daquela hora em que teve o seu primeiro e único
descendente, também era recordado. Depois da morte inesperada e prematura do
seu marido, o seu José de Pardais, que um dia ficara debaixo das rodas da
carreta que conduzia, o filho, Manuel de Pardais, passou a ser a sua única
preocupação. Casado com a Maria do Alandroal, vivia com esta na rua da
Corredoura…
Viúva
e só, depois do casamento do Manuel, passou a viver numa velha casa com restos
góticos do Castelo (na Rua de Estremoz), de onde saia todos os dias, pontual e
cumpridora, para tratar dos seus deveres. Entretinha a fome com uma côdea de
pão duro e duas azeitonas tiradas da tarefa, às quais se juntava a humilhação
das acusações de que era alvo quando saia à rua.
-
Bruxa! Pobre de mim que não sei o que isso
é! – dizia para com os seus botões.
Maria
Gertrudes não era, nem nunca fora bruxa. Era tão somente uma pobre mulher que
levava a vida a trabalhar, na ânsia de ganhar as sopas…Se permitia que assim
lhe chamassem, era porque receava algo muito pior…
Os
homens que labutavam nesta terra de mármore e de olivais, ganhavam a vida com a
foice e a gadanha nas mãos, tratando das mondas, da cortiça e da azeitona.
Nesse tempo da miséria, deitavam contas à vida e lembravam-se dos contos que
ouviam à lareira nas noites invernosas, sobre libras e alqueires de prata,
alcançados no contrabando da raia….
Os
acarretos de mercadorias clandestinas trouxeram para alguns proventos certos e
fortunas consideráveis.
E
a aliciante tentação do contrabando apoderava-se de tal forma desses espíritos,
que criava nos povos fronteiriços a ideia de um inofensivo e inocente
passatempo, apesar deste ser um crime punível. A pobreza e a fome assolavam o
Alentejo e afligiam muitos calipolenses… A miséria despoletava um intenso vaivém dos dois lados
da fronteira, em que os mais destemidos procuravam a sobrevivência.
Indiferentes
ao perigo, os contrabandistas, ardentes, fogosos e apaixonados, verdadeiros
heróis desse tempo, arriscavam nas aventuras, para fugirem às balas certeiras
das autoridades…
Pois
o filho de Maria Gertrudes, o Manuel de Pardais, tornou-se num desses homens.
Queria
fazer fortuna pelo contrabando, trazendo coisas de Espanha que se destinavam à
vila e que fazia nela entrar durante a noite. O bom nome de que o Manuel de
Pardais disfrutava, afastava qualquer suspeita.
No
Castelo, onde vivia Maria Gertrudes, as vizinhas desconfiadas não lhe dirigiam
a palavra. Entre os que ai moravam, havia dois guardas-fiscais que só paravam
na sua casa do Castelo, paredes meias com a dela, nas horas de folga do seu
insistente trabalho de sentinelas vigilantes da fronteira com Espanha.
Mas
eles, como os outros, se reparavam na vizinha, era apenas para a condenarem
pelo seu triste fado, para lhe fazerem as figas destinadas a afugentar o
mau-olhado e excomungar o mal de que dai pudesse resultar… No verdadeiro e
único motivo do facto que dera origem à atribuição do nome de bruxa, ninguém
acertava. E ele existia…
O
filho de Maria Gertrudes, metido no contrabando, corria muitas noites os
maiores riscos e ela, por não conseguir desviá-lo da vida aventureira que
levava, sofria em silêncio. Tinha que ser, contra a sua vontade, sua cúmplice,
auxiliando-o como podia, nas informações a respeito dos guardas-fiscais, seus
vizinhos, livrando-o assim das esperas ou caçadas que estes faziam a quem se
dedicava àquela prática ilícita.
Para
que o filho pudesse entrar livremente em Vila Viçosa com os pesados fardos de
tabaco e outras mercadorias, Maria Gertrudes ia, durante a noite, ao frio e ao
calor, no verão ou no inverno, conforme combinação prévia, dar-lhe das ameias
do Castelo, virada para as terras de Espanha, o sinal de que os guardas tinham
regressado a casa.
A
horas mortas, erguia-se da cama e, de forma lenta e cautelosa, com o coração
triste e em sobressalto, lá ia até á muralha, agitar a candeia acesa, dando
conta ao filho que podia entrar na vila sem receio.
Tudo
fazia para evitar que Manuel fosse preso ou morto e os momentos de angústia era
constantes. Maria Gertrudes vivia apavorada e cheia de tristeza…Mas jamais
deixou de acudir o seu filho.
E
foi por esse motivo, bem diferente do que se imaginava, que foi surpreendida
por uma vizinha, na muralha, com a candeia na mão e um lenço de lã posto sobre
a cabeça.
Dizendo
que tinha ido procurar uma tesoura, o argumento não foi eficaz… Assim se criou
a lenda da bruxaria, tecida à volta da pobre e velha viúva, triste, infeliz e
sem fortuna… Assim cresceu a ideia de que Maria Gertrudes falava com o Diabo à
meia-noite, na muralha do Castelo.
Manuel
de Pardais foi muito tempo lembrado por ser um contrabandista destemido e
arrojado. Tinha a força de Hércules e a matreirice de uma raposa, para fugir a
tempo da guarda…. Enquanto havia trabalho na azeitona ou na labuta das
herdades, Manuel não se negava, pois não era um homem de má condição. O sangue
dos seus chamava-o para essa luta pelo pão de cada dia. Na época de crise, sem
mondas, nem ceifas, amanhava os sapatos velhos ou limpava a caçadeira.
Continuava
a ser, no pensar de todos, o trabalhador infatigável e talvez por isso, a sua
outra atividade não levantasse suspeitas. Todas as manhãs partia para o
trabalho e de lá voltava á noite. Quem o via regressar, pensava que ele ia
encontrar o justo repouso das suas fadigas.
Mas
na verdade, partia sempre para as missões arriscadas, de que se incumbia às
escondidas: conduzir os fardos pesados do contrabando que alguém deixava em
sítio previamente combinado, que ia buscar e depois entregava na vila, em casa
de confiança. Percorria os campos de Alburquerque a Olivença, entrando depois
por Juromenha, ao atravessar o Guadiana….
A fuga às brigadas de carabineiros espanhóis e
da Guarda Fiscal portuguesa quando se faziam incursões no interior do
território espanhol em plena noite, de carga às costas que variavam entre os 25
e os 40 quilos, e ao longo de distâncias que poderiam atingir os 60
quilómetros, exigia indivíduos física e mentalmente dotados.
Mal
iluminada, escassamente pontuada de candeeiros de petróleo que em noites de
luar não se acendem, Vila Viçosa, no silêncio das noites, parecia dormir. Nem
vozes, nem passos. O sossego dominava. E lá partia o Manuel de Pardais, pelo
muro da Tapada Real, para um lugar só por ele conhecido, para trazer os fardos
do contrabando…
Contrabandear
significava correr grandes perigos. O afogamento, na travessia de rios e
ribeiras, durante o transporte noturno em noites e madrugadas invernosas de
chuva e frio, era um deles. Também havia o risco de ser preso. E os tiros, por
vezes certeiros…
O contrabando foi, ao longo de séculos, o
sustento adicional, para muitas famílias que não conseguiam suprir as suas
necessidades no trabalho agrícola.
Desse tempo restam as memórias e os testemunhos
das invulgares personagens que mantiveram um permanente jogo do gato e do rato
no desempenho dos respetivos papéis: os que viviam do contrabando e aqueles que
faziam valer a legalidade.
Esta
história parece imaginada, mas foi vivida na realidade e ensina-nos que devemos
tentar ser justos nos juízos que formulamos sobre os outros. Nem tudo o que
parece, é…
A
dor de Maria Gertrudes pela vida paralela do filho, mostra-nos que o coração de
Mãe é sempre condescendente e carinhoso. A má fama que criou e que se propagou
pela Vila Viçosa de então, ignorou o seu drama íntimo. Dai que o autor tivesse tido
a necessidade de o dar a conhecer, para que algum ensinamento ou proveito possa
vir daí a ser encontrado…
Este
é um resumo e uma adaptação do conto “A Bruxa
do Castelo de Vila Viçosa”, obra escrita por Celestino David, para a
Livraria Escolar de Vila Viçosa (propriedade de D. Joana Ruivo, na Rua Florbela
Espanca), em 1984, nas comemorações do seu 25º aniversário. Esta edição contou
com desenhos do pintor Armando Alves.
-Agradeço
à D. Maria de Lurdes Gonçalves (84 anos), nascida na Freguesia de Pardais, ao
Dr. Nelson Rebola e à Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, pelo apoio
prestado.
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