quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

UMA “BIBLIOTECA UNIVERSAL” EM VILA VIÇOSA - A Livraria da Casa de Bragança no século XVI.


Nos nossos dias, muitos desconhecem a importância que Vila Viçosa teve durante determinados períodos da História de Portugal.
É difícil imaginar como, no coração do Alentejo, esta pequena localidade possa ter assumido um lugar de destaque, não só a nível ibérico, mas também no que concerne ao contexto europeu.
De facto, em Vila Viçosa, durante o século XVI, assistiu-se a uma forte ação cultural promovida pela Casa de Bragança. Este é mais um aspeto singular e excecional que nos demonstra o prestígio e a erudição da Casa Ducal. Face à Coroa, os Duques de Bragança eram os únicos rivais, na riqueza, no prestígio e no poder. E o Paço de Vila Viçosa constituía a materialização arquitetónica dessa influência política.
Durante este período, Vila Viçosa foi um palco privilegiado onde acorreram diversas personalidades, que contribuíram para que este fosse um lugar de inigualável prestígio e dinâmica cultural. A Casa de Bragança era a única Casa que emulava a Coroa, em termos culturais.
O quinto Duque, D. Teodósio I é amplamente conhecido pela sua elevada erudição e pelo seu interesse pelas artes. Os anos formativos da sua vida coincidiram com a rápida ampliação da visão europeia do mundo resultante das grandes navegações ultramarinas, e a sua educação formal foi ministrada por conhecidos mestres humanistas.
Esta sólida preparação levou-o a adotar os valores e gostos do Renascimento. A passagem de grandes humanistas pela corte do Duque em Vila Viçosa é um exemplo categórico desse facto. Os conteúdos descritos no inventário de D. Teodósio I evidenciam a opulência e o poder da mais importante casa aristocrática do Reino.
Na descrição do inventário post-mortem do Duque, estão presentes conteúdos tão variados como a armaria, cavalaria, cerâmica, exótica, escultura, joias, medalhas, mobiliário, têxteis, moedas, música, prataria, vidros, iluminação, ourivesaria e livros, num total de mais de 6000 itens.
Os livros ocupam o primeiro lugar, em termos do número de exemplares, seguidos pelos têxteis.
A livraria do Duque D. Teodósio I (5º Duque de Bragança – 1510?/1563), lugar partilhado de estudos e outros saberes era, no seu tempo, uma das maiores da Europa, em comparação com outras bibliotecas da época, numa dinâmica ibérica e europeia, sendo constituída por cerca de 1600 volumes. Era impressionante e extraordinária, devido à sua dimensão e especificidade.
Além do Paço, que funcionava como uma verdadeira corte do Humanismo, o cultivo das letras exercia-se também nos conventos aqui existentes. Eram também providos de bibliotecas.
A livraria da Casa de Bragança constituía um caso de uma absoluta singularidade no caso português, que revela a especificidade da Casa de Bragança no contexto da aristocracia da época. Era também um símbolo de ostentação, poder e opulência.
Segundo a investigadora Prof.ª Doutora Ana Isabel Buescu, (que foi responsável por esta temática no âmbito do projeto “De todas as Partes do Mundo – O Inventário do 5º Duque de Bragança, D. Teodósio I”), tratava-se de uma livraria multilingue (com obras em latim, grego, hebraico e português), muito atualizada[1].
 O estudo comparativo efetuado por esta especialista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com outras bibliotecas régias e aristocráticas deste período, permitiu compreender a importância da Livraria do Paço Ducal de Vila Viçosa.
Trata-se de facto de uma grande livraria europeia do século XVI, sem paralelo em Portugal.
A título comparativo, a livraria de D. João I, Rei de Portugal (falecido em 1433), era composta por 20 livros; a livraria de D. Duarte, Rei de Portugal (falecido em 1438), tinha cerca de 80 livros; a de Afonso V de Aragão (falecido em 1458), continha cerca de 1000; a de Filipe III de Borgonha (falecido em 1467), tinha 859 livros; a livraria de Matias Corvino, Rei da Hungria (falecido em 1490), tinha 2500 livros; a livraria de Isabel, a Católica (falecida em 1504), era composta por entre 400 a 500 exemplares; Henrique VII de Inglaterra (falecido em 1509), tinha 170 livros; o Rei D. Manuel I de Portugal (falecido em 1521), era proprietário de 107 livros; Francisco, Rei de França (falecido em 1547) tinha 1890 livros e Juan Alonso de Gúzman, 6º Duque de Medina Sidónia (falecido em 1558), tinha 250 livros.
O Paço Ducal de Vila Viçosa, continha, sem dúvida, a maior Biblioteca Portuguesa do século XVI, só ultrapassada pela Biblioteca do humanista Aquiles Estaço, que se encontrava em Roma.
O que havia na livraria do Duque?
Esse espaço de silêncio e de sabedoria continha vários mapas mundi em pergaminho e constituía uma “biblioteca universal”, que contemplava os principais ramos de saber da época: Teologia, Leis e Cânones, Literatura religiosa em latim, Literatura profana em romance, Arquitetura (com obras dos grandes arquitetos renascentistas), Poesia latina, Música, Filosofia, Matemática, Astrologia, Astronomia, Medicina, Arte Militar e de Guerra e Geografia e História.
Os nomes fundamentais de cada saber estavam presentes nesta atualizadíssima Biblioteca, tanto no que concerne a autores, quer no que diz respeito a editores.
A investigação efetuada no âmbito do projeto De todas as partes do Mundo – O Património do 5º Duque de Bragança, D. Teodósio I[2], organizado pelo Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e pela Fundação da Casa de Bragança, permitiu constatar, no âmbito da livraria, a existência de uma elevada percentagem de autores contemporâneos (século XVI), também com dezenas de livros de Erasmo de Roterdão e publicações antiluteranas e antiprotestantes; a edição em quantidade de autores clássicos, recentes, ou muitos recentes e a atualização de obras a nível do humanismo e da ciência.
Destaca-se também a quantidade de obras manuscritas e livros herdados de D. Jaime e D. Leonor de Mendoza. Verificam-se de igual modo preocupações terapêuticas e de higiene, reveladas pelos livros de Hipócrates e manuais de anatomia. A nível da matemática e da astronomia, concluiu-se que só faziam parte do acervo livros eruditos, recentes e muito sofisticados.
Todos os livros tinham uma avaliação monetária, proporcionalmente inversa ao número de exemplares existentes, ou seja, os livros eram muitos, mas o seu valor era pouco significativo, tendo em conta os valores globais referidos no inventário, onde as joias e os têxteis assumem uma maior importância, em termos de valor monetário.
Não se tratava da biblioteca de um amador, na medida em que se verifica muito rigor nas escolhas e a interpretação desses dados só poderia ser efetuada por especialistas, o que pressupõe a presença de cientistas no quotidiano do Paço.
A existência de um observatório astronómico e a criação dos Estudos Gerais (Universidade) no Convento dos Agostinhos poderão ter sido elementos propiciadores da multiplicidade de livros existentes no Paço Ducal de Vila Viçosa.
A autorização concedida por breve do Papa Pio IV para este efeito é uma das razões apontadas para a diversidade e riqueza desta livraria, projeto que não chegou a ser concluído, devido à morte do Duque. Este desejo colocava a livraria do Duque num outro horizontal intelectual mais abrangente, tendo em conta este projeto cultural e político.
A livraria estava inscrita numa dinâmica ibérica e europeia no que respeita à aquisição e circulação de obras, o que poderá significar que o Duque D. Teodósio I (à semelhança do seu antecessor D. Jaime) teria vários agentes com ligações diretas a cidades como Sevilha, Salamanca, Paris, Lyon, Antuérpia, Basileia, Roma, Veneza. Estes emissários enviavam para Vila Viçosa informações detalhadas sobre tudo o que se passava no contexto europeu, nomeadamente em relação aos livros.
Infelizmente, por diversas vicissitudes, quase nada resta desta magnífica Livraria do Paço Ducal do século XVI. Trata-se portanto, e segundo a opinião da Professora Doutora Ana Isabel Buescu, de uma “Biblioteca Imaterial”, conhecida graças ao inventário do Duque.
Hoje foi possível, no âmbito de uma conferência que decorreu no Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, destinada ao alunos da Licenciatura em História da FCSH/UNL, coordenada pela Prof.ª Doutora Ana Isabel Buescu, conhecer um pouco mais sobre este tema.
O grande mistério e a pesquisa que terá que ser desenvolvida no futuro prende-se com a localização dos livros.
Onde estão? Como desapareceram? Terão sido destruídos com o Terramoto de 1755, depois da ida de Vila Viçosa para Lisboa em 1640? Estarão dispersos por alguma Bibliotecas do nosso país?
São os mistérios que estão por resolver…
Bibliografia consultada:
BUESCU, Ana Isabel, Livros em Castelhano na Livraria de D. Teodósio I (1510?-1563), Estudios Humanísticos. Historia. Nº 12, 2013, pp. 105-126



[1] Projecto FCT, PTDC/EAT-HAH/098461/2008, coordenado por Jessica Hallett, no âmbito do CHAM-FCSH/UNL/UAç.

[2] 1 Projecto FCT, PTDC/EAT-HAH/098461/2008, coordenado por Jessica Hallett, no âmbito do CHAM-FCSH/UNL/UAç.



terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O Convento Velho de São Francisco dos Capuchos


Foi criado a instâncias de D. Jaime, quarto Duque de Bragança no ano de 1500. Este local foi escolhido pelos frades castelhanos, dirigidos pelo Frei João de Guadalupe. Encontra-se a cerca de 3 km de Vila Viçosa, num “ermo apertado entre dois cabeços cercados de mato espesso, perto da Ribeira da Fadraga”, no caminho para São Romão.
Anteriormente, desde meados do século XV, existia neste local uma Ermida dedicada a Nossa Senhora da Piedade e foi também por este motivo que os Capuchos escolheram este lugar.
A Ermida foi reconstruída integralmente por Frei Paulo de Évora em 1654 e foi profanada em 1834 (ano da extinção das Ordens Religiosas), quando é roubado o sino do campanário. O edifício foi recuperado em 1947 pelo anterior proprietário, João Cravo.
 A insalubridade deste primeiro Convento originou que, em meados do século XVI, se verificasse uma mudança para um melhor local mais próximo de Vila Viçosa, o que se efetuou sob patrocínio do 5º Duque D. Teodósio I, junto do Outeiro da Forca. No entanto, este Convento Velho nunca foi abandonado. Até ao século XIX, os Capuchos zelaram sempre pelo local.
Esta nova instalação não foi ainda a definitiva, já que o espaço conventual se encontrava em terrenos alagadiços, provocando graves transtornos na vida comunitária e causando inundações no Inverno.
Dá-se portanto a 3ª e última deslocalização para o espaço onde se encontra atualmente o Convento dos Capuchos e onde estava uma antiga Ermida dedicada a São Lázaro. O lançamento da primeira pedra deste local teve lugar no dia 6 de Julho de 1606.
No Convento de São Francisco Velho encontra-se também a Fonte das Lágrimas, junto da Ribeira da Fadraga, que foi poeticamente descrita pelo Padre Espanca no final do século XIX. Esta fonte abastecia a comunidade franciscana através do aqueduto quinhentista que se vê nas imagens. Trata-se de uma construção do estilo gótico final, do tempo de D. Jaime. A envolvente remete-nos, segundo Túlio Espanca, para o “misticismo contemplativo da época”.
Durante as Invasões Francesas e depois de uma rebelião que teve lugar em 1808, o povo de Vila Viçosa teve que fugir para este lugar, para fugir à repressão dos soldados franceses do General D’ Avril.
A propriedade de São Francisco Velho pertence atualmente à Família Ferreira, a quem agradeço a oportunidade da visita.














segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O PASSADO ROMANO DA FREGUESIA DE PARDAIS

O texto que aqui apresentamos pretende aprofundar uma reflexão sobre a ocupação deste território durante o período romano. É graças à presença romana que se inicia a exploração do mármore, sendo hoje reconhecido que parte dessa extração foi utilizada nas grandes construções efetuadas na antiga capital da Lusitânia, Emérita Augusta (Mérida). E como seria o povoamento no concelho de Vila Viçosa? Pequenos povoados ou villas (residências campestres da classes altas romanas)?

Em 1965, o Diretor do Museu Monográfico de Coimbra, Dr. Bairrão Oleiro, desloca-se a Vila Viçosa, com o objetivo de estudar os dois sarcófagos romanos descobertos em São Marcos, na freguesia de Pardais. Os referidos monumentos funerários são encontrados no âmbito da exploração de mármore (que nessa altura se encontrava em pleno desenvolvimento), são oferecidos ao Museu-Biblioteca da Casa de Bragança e colocados no Castelo, onde ainda hoje fazem parte do circuito expositivo. O Sr. Gualdino Borrões, adjunto do Conservador do Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, Dr. João de Figueiredo, foi uma peça fulcral em todo este processo.

Com base em alguns testemunhos, tentando saber um pouco mais sobre este tema, o Dr. Bairrão Oleiro procurou obter mais informações in loco, sobre a possível existência de mais vestígios da ocupação romana na freguesia.

Existiam, de facto, algumas referências em relação ao “mundo romano” em Pardais. Aliás, a própria denominação parece provir da deturpação de “paredais”[1]. No século XIX, o cronista calipolense Padre Joaquim José da Rocha Espanca relata a existência de bastantes e notáveis vestígios da presença romana. Em 1824, precisamente na Herdade da Fonte da Moura, foi encontrada uma campa romana por um lavrador local[2].
Na sequência dos relatos, o Dr. Bairrão Oleiro dirigiu-se a Pardais, tentando localizar uma casa onde existiam outros fragmentos de mosaicos semelhantes aos que se encontravam em Vila Viçosa, informação que conseguiu confirmar. Na Courela da Fonte da Moura (no acesso á Fonte Soeiro), na referida freguesia, na casa térrea do então proprietário Joaquim José Gracias, encontrava-se um degrau corrido ao longo de toda a fachada, numa configuração única em Portugal. Toda a casa estava pavimentada com fragmentos de mosaicos romanos que pertenciam ao mesmo conjunto que se encontrava no Museu em Vila Viçosa. Outros fragmentos foram incrustados na parte superior de um murete junto à entrada[3].

O Sr. Joaquim José Gracias informou o Dr. Bairrão Oleiro que esses e muitos outros materiais, incluindo moedas, haviam sido encontrados há anos nas imediações da sua casa, também como consequência da exploração das pedreiras de mármore e que bastantes coisas tinham sido levadas para Lisboa por um engenheiro “estrangeiro” que orientava a exploração nessa época.
O Dr. Bairrão Oleiro afirma que esta estação deverá ser a mesma que foi descrita pelo Prof. Manuel Heleno, em 1937, em comunicação apresentada ao Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia e considerada como uma “villa” romana (com uma sala pavimentada de mosaico e desenho geométrico, canalização de chumbo, colunas de mármore e materiais de construção, espalhados por uma área de cerca de um hectare)[4].

Hoje foi dia de visitar a Fonte da Moura. Por entre as pedreiras de mármore e a industrialização marcada na paisagem, pude constatar que algo permanece neste território. As características muito relevantes na freguesia de Pardais eram a fertilidade dos solos e a abundância de água, fatores que determinaram a ocupação humana deste território, pelo menos desde o período romano e que continuam presentes.
Falei com o Sr. Joaquim Gracias, filho do proprietário que partilhou as informações com o Dr. Bairrão Oleiro. Recordava-se perfeitamente da forma como a exploração das pedreiras alterou substancialmente a paisagem e contribuiu para a degradação ou perda dos vestígios do período romano.

Ainda assim podem encontrar-se alguns desses vestígios, no local onde terá existido uma villa romana, que teria algumas semelhanças com a que existia na Torre do Cabedal, na freguesia de Ciladas/São Romão, no limite noroeste do concelho de Vila Viçosa. Seriam estas “villae” propriedades de famílias abastadas com ligações a Emerita Augusta (Mérida), antiga capital da Lusitânia? Pode ser uma hipótese.
Uma outra hipótese tem a ver com a possibilidade de ter existido no local um povoado romano, tal como aconteceria noutras zonas do concelho, nomeadamente em Bencatel, como estruturas de apoio para a exploração do mármore, durante esse período.

O trabalho de terreno efetuado hoje permitiu identificar um número considerável de fragmentos de mosaicos, tijolos, lateres e um marco em pedra. A suposta villa ou povoado aqui existente teria uma dimensão considerável e várias estruturas para distribuição e armazenamento de água.
Joaquim Gracias referiu que o seu pai, no extremo da horta, terá encontrado aquilo que seria parte de um tanque, nos anos 60. Recorda-se também do elevado número de mosaicos encontrados na envolvente da Fonte da Moura. Talvez um levantamento arqueológico permita saber mais sobre esse passado romano do concelho. Seria conveniente que a Carta Arqueológica pudesse ver a luz do dia com alguma brevidade, para se poder identificar e salvaguardar o que ainda for possível.




[1] CARNEIRO, André. "Um primeiro olhar sobre o povoamento romano no concelho de Vila Viçosa", in revista de cultura Callipole, n.º 21, Câmara Municipal de Vila Viçosa, 2013, pp. 213-232.
[2] Espanca, Pe. J. J. da Rocha (1983) Memórias de Villa-Viçosa. (Cadernos Culturais de Vila Viçosa no 1 a 35), Vila Viçosa, Câmara Municipal de Vila Viçosa [1.ª ed. 1885].
[3] Parte destes mosaicos foram posteriormente depositados no Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, mais propriamente no Castelo de Vila Viçosa, onde ainda hoje se encontram.
[4] Vide O Arqueólogo português, nº II, página 293.





                           Conjunto de fragmentos de mosaicos encontrados na Fonte da Moura




Courela da Fonte da Moura (Fonte Soeiro- freguesia de Pardais), onde terá existido uma villa ou um povoado romano





                                                      Fragmentos de tijolos romanos





                                  Marco que foi posto a descoberto nos anos 60 do século XX

terça-feira, 28 de novembro de 2017

CALLIPOLE SUBTERRÂNEA - capítulo II


Continuamos na pesquisa e identificação das antigas cisternas e aquedutos subterrâneos de Vila Viçosa! Hoje mais um “submundo” no centro histórico, que revela todo o engenho relativo ao armazenamento de água.


Neste caso, temos uma mina escavada na rocha, que faz o aproveitamento das águas pluviais, através de um sistema de recolha de água. Começou a encher, com as chuvas de hoje! Curiosas são também a abóbada e a janela de respiração. Tem cerca de oito metros de profundidade. Penso tratar-se de uma estrutura do século XVII. Terá alguma conexão com outras cisternas da envolvente? Aparentemente não, mas estamos a tentar descobrir! 

A grande dificuldade sentida no âmbito deste levantamento tem a ver com a falta de autorização de alguns proprietários para visitas às diferentes cisternas existentes. A interdição de acesso aos espaços tem muitas vezes a ver com a falta de condições de segurança e com a necessidade de proteger estes espaços. Temos a certeza que existem mais estruturas semelhantes no centro histórico de Vila Viçosa e continuamos a desenvolver este trabalho, no sentido de encontrar mais aquedutos e cisternas na envolvente do Paço Ducal e do Castelo.






















terça-feira, 21 de novembro de 2017

A LENDA DA VILA VIÇOSA

Embora já esteja exaustivamente estudada a origem histórica do nome de Vila Viçosa, esta é uma das lendas mais ingénuas e cativantes da tradição oral portuguesa, e que explica, bem à sua maneira, terna e simples, não só o aparecimento dessa designação tão sugestiva para uma terra de prados verdejantes e flores atraentes, mas também a história lendária da própria Confraria de Nossa Senhora de Vila Viçosa...
Corria o ano de 1523. Entre os seus inúmeros figurantes, destacaremos agora um jovem pastor castelhano, de nome Fernando.
Fernando era um rapazinho estranho. Alto, magro, de olhos grandes e escuros, modos repousados e olhar sereno.

A devoção à Virgem constituía o seu principal pensamento. Gostava de trabalhar para não ser pesado a ninguém, já que o destino o fizera órfão desde os cinco anos de idade. Porém, nesse ano de 1523, como em Espanha não arranjasse trabalho, resolveu emigrar para Portugal. E, aqui, Fernando em breve entrou ao serviço de um rico criador de gado. A sua tarefa era fácil: apascentar rebanhos naquelas terras de Além Tejo, tão ricas e abundantes em pastos. 

Os meses correram serenos. Fernando adaptara-se perfeitamente aos nossos costumes. Porém, certo dia, ao voltar do campo, Francisca, a jovem Chiquinha, filha do patrão, chamou-o de parte, com ar de segredo.

Fernando corou vivamente. Era demasiado tímido e habituara-se a viver isolado, sem contacto com os rapazes ou raparigas da sua idade, apesar dos seus dezoito anos.
Francisca sorriu-lhe, afável, chamando-o de novo: 

— Fernando! Anda aqui! Preciso falar-te. 

O rapaz perguntou, a medo: 

— Que desejais, menina Chiquinha?

Ela tomou uns ares de mistério. 

— Ouvi contar umas coisas e quero saber a verdade! 

— Se souber responder-vos... 

— Só tu podes responder-me. 

— Eu?

— Sim, tu! 

E aproximou-se mais do jovem, segredando-lhe quase: 

— Que fazes na campina?

O rapaz respondeu, mais sereno
:
— Levo o gado a pastar. É tão viçosa esta erva!... 

A rapariga insistiu:

— E mais nada?

Ele encolheu os ombros. 

— Fico por ali, todo o dia... 

Francisca baixou ainda mais a voz, a reforçar o tom de segredo.

— E não te aconteceu nada de estranho? Diz a verdade! 

Fernando voltou a corar. 

— Enfim... eu tenho um altar de pedras e... 

A jovem interrompeu-o: 

— Ah, isso já condiz com o que me contaram! 

— E que foi? 

Ela sorriu mais e interrogou, intencionalmente: 

— Sabes? Disseram-me que levas o dia a adorar uma imagem da Virgem, mas que não é a da capela. Trouxeste-a de Espanha? 

O pastor baixou o olhar. 

— Não, menina Chiquinha. 

— Então?

— Encontrei-a aqui no vale... 

A jovem pareceu ficar perplexa, mas logo mais entusiasmo pôs na voz: 

— No vale? Tens a certeza do que afirmas? 

— Sim. Estava cheia de terra!... 

A conversa ganhou calor. Fernando começara também a animar-se. Prosseguiu, sorrindo já, num à-vontade de colegial: 

— Se a vísseis! Mas eu limpei-a com o lenço e ficou lindíssima. Depois, fui buscar pedras, construí um altar e lá está ainda. 

A jovem entusiasmou-se: 

— Fernando! Eu posso vê-la?

— Quando quiser. 

— Então, amanhã, irei ter contigo ao campo! 

E assim aconteceu. Ardendo em curiosidade, a Francisca parecia-lhe que as horas nunca mais passavam. Levantou-se mais cedo e, iludindo a vigilância dos pais, foi reunir-se ao jovem pastor. 

Fernando orava aos pés da Virgem, quando Francisca chegou. Nem deu pela presença da jovem. Esta também não teve coragem para o interromper. E esperou em silêncio que o pastor a pressentisse. 

Quando deu pela presença de Chiquinha, Fernando mostrou-se confuso. 

— Estáveis aqui há muito? 

Ela sorriu-lhe. 

— Sim, há já muito tempo, Fernando. 

E num tom de encantamento: 

— Como tu sabes orar! O teu rosto parecia diferente.
O jovem mostrou-se enleado. Olhou a erva do chão, fresca, viçosa e bela. Sentiu que devia dizer algo que contradissesse essa afirmação:

— Ora… não pense assim... Eu nada sei. Nada valho! 

E sorrindo, de súbito iluminado por uma estranha ideia, perguntou: 

— Vamos rezar juntos? 

Francisca olhou o céu carregado de nuvens. Meneou a cabeça. 

— Não me importava, mas vês aquelas nuvens? Vai haver trovoada e aqui não há abrigo.
Tenho de voltar já para casa. 

O pastor retorquiu: 

— Já não chegareis a tempo!

— Então que vou fazer? Valha-me Nossa Senhora! 

Ele sorriu, cheio de confiança.

— Não tenhais medo. Ficai aqui, porque neste local não passará a tempestade. 

A jovem olhou-o com espanto. 

— Pode lá ser! Ela não tarda! Estão já a cair os pingos grossos que antecedem as grandes trovoadas! 

— Sentai-vos nesta pedra. Eu vou juntar o gado à nossa volta.
Vendo-o afastar-se, o medo aumentou. 

— Fernando! Não me deixes sozinha!... Tenho tanto medo! Para que saí eu de casa? 

Já de longe, o rapaz gritou-lhe: 

— Ficai aí! Eu volto já! 

A tempestade aproximou-se rápida. Faíscas riscavam o céu de chumbo em todas as direções. Parecia um inferno de luzes e ruídos. Ribombavam os trovões, acordando ecos pela serra de Borba. A chuva começara a cair com força implacável, alagando tudo...
Só nesse pedaço do vale, como oásis no deserto, a terra continuava enxuta!
Toda curvada sobre a pedra improvisada em banco, Francisca estremecia a cada relâmpago que acendia o firmamento.

Perfeitamente calmo, o pastor olhava a imagem sobre o altar que ele próprio havia construído. Francisca mostrava-se rendida. 

— Fernando! Que estranho é tudo isto! Por muitos anos que viva nunca mais esquecerei quanto se está a passar aqui. Até parece que os animais têm compreensão! Todos reunidos a nossos pés e sem fugirem! 

O pastor olhou a companheira.

— A chuva… não cai sobre nós! 

— Mas isto é um milagre do Céu! 

A voz do jovem tornou-se suave. 

— É milagre da Virgem! 

Francisca olhou de novo a imagem sobre o altar e caiu de joelhos.

— Fernando! Vamos rezar! 

Perto, caía a chuva, espapaçando a terra. No firmamento, continuavam a fuzilar relâmpagos, numa apoteose de luz...
Quando a tempestade passou, horas depois, Fernando e Francisca voltaram para casa. E só no caminho se deram conta da extensão da violência dos elementos em fúria.
Ao verem-nos juntos e absolutamente enxutos, como se a chuva não tivesse caído sobre eles, a murmuração começou a surgir. A tia Ana do Casal ficou a cismar. 

— Onde diabo estiveram eles metidos todas estas horas? 

A senhora do Juncal, quando os viu passar, abriu os olhos num espanto e chamou uma das servas. 

— Maria! Estás a ver? A chuva não quis nada com eles. E estiveram juntos... 

Maria riu, maliciosa. 

— Os pombos sabem resguardar-se...

— Mas a mãe saberá disso? Ele é um pastor! Que pouca vergonha! 

E a má-língua em breve tomou vulto, até que o pai de Francisca resolveu ir falar com ela.
— Anda cá, rapariga!

A voz dele era dura. A expressão fechada. Francisca amedrontou-se. 

— Que tem, meu pai?

Ele gritou: 

— Preciso saber por onde andaram ontem, tu e o Fernando, durante a tempestade! 

A jovem baixou os olhos. O pai gritou mais ainda:
 
— Vamos! Responde! 

O coração de Francisca começou a bater com mais força. 

— Meu pai... Eu e o Fernando estivemos no vale...

— No vale? Como? Onde? Explica-te! Onde se recolheram da chuva? 

— Estivemos ao ar livre, pai! 

— Mentes! São ambos dois mentirosos! Olha que ele já levou a sua conta e tu vais apanhar também, se não dizes a verdade! 

Aflita, a jovem perguntou: 

— Que fizeram ao Fernando?

— Isso não te diz respeito! Mas fica sabendo que não ando a trabalhar como um moiro para que um mariola qualquer venha de outras terras desonrar o meu nome!
Francisca arriscou, a medo.

— Mas, meu pai! Nós não fizemos nada de mal! 

O homem cresceu para ela. Deu-lhe um tremendo safanão, que a fez perder o equilíbrio.
A rapariga caiu. Mas o pai continuou a gritar. 

— Minha desavergonhada! Ainda tens descaramento para dizeres que não fizeram mal!
Foges de casa, vais ter com um homem ao campo, voltam ambos para casa muito contentes e enxutos… e não fizeram mal!... Isto não lembra ao diabo!

Francisca levantou-se, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.
— Não fale assim, meu pai... Deus pode castigá-lo! Este segredo não é só meu...
O lavrador cerrou os dentes. 
— Parva! O segredo não é só teu, claro! Também é dele… e agora de toda a gente!

Francisca tremia toda. Os soluços começaram a cortar-lhe a respiração. O pai segurou-lhe num braço, com brutalidade. 

— De que se trata, então? Por que fugiste para o campo? 

Francisca arfava. Balbuciou a medo: 

— Queria… ir ver a Nossa Senhora!

A surpresa ficou estampada no rosto do lavrador. 

— Ir ver o quê? 

A jovem repetiu, sempre chorando: 

— A Nossa Senhora que ele encontrou! Arranjou-lhe um altar e lá rezámos juntos... 

A expressão do homem mostrava desorientação.

— Que invenção foi essa agora? O que eu preciso saber é a razão porque nem sequer molharam as roupas quando aqui até houve cheia! Onde estiveram? 

A rapariga serenou um pouco mais. Uma força interior ajudava-a na sua defesa.

— Pai! Embora não acredite, asseguro-lhe que estivemos em campo aberto, nós e o gado, junto de Nossa Senhora. Se visse, pai!... Como era estranho ver correr a água à nossa volta e nós sem frio e sem chuva! 

O homem franziu as sobrancelhas. Sentia necessidade de protestar, mas fazia-o agora, sem saber porquê, de maneira menos rude. 

— Estás louca, rapariga! 

Ela aproveitou a calmaria e pediu carinhosamente: 

— Pai! Venha connosco ver a imagem que o Fernando encontrou! Venha, pai! 

E o entusiasmo de Francisca era tal, que o lavrador achou por bem ir ele próprio certificar-se da veracidade das palavras de sua filha.


Quando lá chegaram, viram o altar, simples e sereno como um símbolo de fé a espalhar luz no vale. Porém, a imagem da Virgem havia desaparecido. Aflita, Francisca começou a olhar em todas as direções, chamando alto: 

— Fernando! Fernando? Para onde levaste a Senhora? Precisamos dela, Fernando! Onde estás, Fernando?

Mas Fernando não respondia. Não podia responder. Tinha fugido para Espanha, levando consigo a imagem da Virgem. 

Atarantado com as más-línguas do povo, que duma conversa inocente soubera concluir monstruosidades, o jovem pastor ausentara-se sem mesmo procurar despedir-se de Francisca. O facto exasperou o lavrador, que participou às autoridades espanholas a fuga de Fernando, mandando-o prender.

Foram encontrá-lo em Córdova, junto das montanhas Gamonesas. Estava de joelhos, perante uma linda imagem da Virgem! 

Sob prisão, voltou o jovem pastor para Portugal e de novo foi interrogado pelo pai da Francisca.
Defrontaram-se então a soberba e a humildade. O lavrador perguntou: 

— Por que fugiste? 

A resposta veio pronta e serena:

— Não sei bem... Creio que me assustei. De repente, vi tudo transformado à minha volta. Tudo modificado... As palavras com sentido diferente... As pessoas só a pensarem mal... E fugi! 

— E que houve entre vocês dois, tu e a minha filha? 

— Nada de mal. Conversámos… rezámos juntos... 

— Juras? 

— Dou a Mãe Santíssima como testemunha! A menina Chiquinha é uma boa e pura rapariga. Até é pena que venha a cair nas mãos de um homem rude, como muitos que andam por aí!

— Achavas melhor que fosse contigo, não?

O rapaz fez um olhar de espanto. 

— Mas eu não pretendo casar com a vossa filha! 

O lavrador voltou a encolerizar-se. As veias incharam-lhe no pescoço largo e sanguíneo: 

— Agora desdenhas, não é assim? Agora! Mas olha que, se os outros murmuram dela, só tu és o culpado!

O rapaz mostrou-se aflito.

— Que Deus me perdoe, então! Não tive o menor desejo de a deixar mal! Eu tinha o meu segredo. Ela é que o descobriu... 

— Mas qual segredo, homem? 

— O da imagem da Virgem que eu encontrei. Desde então consagrei-me inteiramente à sua devoção. 

O pai de Francisca olhou-o com desprezo. Desprezo onde havia muito de deceção.

— Some-te da minha vista! Não és homem, nem és nada! És um burlão. Levaste para Espanha uma coisa que encontraste em Portugal e, portanto, nos pertence!
Fernando não alterou a voz. Meneou apenas a cabeça e olhou o antigo patrão com ar de tristeza.

— Que Deus vos perdoe essas ofensas! Por mim, não vos quero mal. Mas eu não roubei nada. A «coisa» de que falais é a imagem da Virgem que eu encontrei. Pertence-me.

— Mas encontraste-a em terras de Portugal! Portanto deve ficar aqui!
Fernando olhou bem de frente o seu interlocutor. Olhou-o, não como habitualmente fazia, com o olhar fugidio. Olhou-o de homem para homem, embora sem arrogância, nem desprezo.

— Senhor! Se todos tratassem bem a imagem da Virgem, eu faria o sacrifício de me separar dela. Mas mal entrei em Portugal, soube que os senhores tinham destruído o altar que eu construí, pedra por pedra, com tanto amor... Sinal que fiz bem em levar a imagem comigo. Quando souberem compreender a Sua infinita bondade e dar apreço à Sua companhia, então, Ela descerá de novo dos Céus sobre as terras de Portugal. Mas então não deem ouvidos a intrigas e maledicências. Ajoelhem de alma tranquila e agradeçam-Lhe a Sua visita! 

Fernando calou-se um momento. O lavrador olhava-o, perplexo, sem poder compreender por que razão um simples pastor se exprimia assim tão bem...
O rapaz voltou a falar.

— Adeus, senhor! Que a Virgem proteja sempre a vossa filha, bem digna de uma vida sã!
— Para onde vais?

— Vou-me embora.

— E a imagem? Fica connosco?

— Creio que não. 

— Já a levaram para o campo! 

— E onde está o altar que lhe construí? 

— Faremos outro, melhor... Mais rico! 

— Pois seja o que a Virgem quiser! Adeus... E tratai bem a vossa filha!

A tarde morria na linha larga do horizonte. Uma tarde serena, em que o ocaso punha manchas de sangue no firmamento. 

O lavrador ficou como que preso ao solo, vendo a figura esbelta do pastor afastar-se vagarosamente. E quando o seu contorno não era mais que um pequeno ponto a caminho da fronteira, alguém veio acordá-lo daquela espécie de torpor. 

— Senhor! Senhor! A imagem da Virgem desapareceu misteriosamente! Estávamos ao pé dela e de repente... Já não a vimos! 

O lavrador sorriu então, pela primeira vez desde que tudo aquilo acontecera.
— Sei onde a poderemos encontrar!

— Onde, senhor? 

— Nas montanhas de Córdova! 

Um frio estranho atravessou-lhe a cabeça. Continuava a olhar fixamente, no horizonte, o pequenino vulto de Fernando a afastar-se em direção a Espanha
.
Ao vê-lo assim, como paralisado, um dos criados inquietou-se.
— Que tendes, senhor? Estais doente?

Sempre sorrindo, o lavrador abanou a cabeça.

— Nunca me senti tão bem! 

E começou a andar em direção a casa...

Daí a tempos, o lavrador voltou às montanhas de Córdova. E encontrou novamente Fernando ajoelhado aos pés de uma linda imagem da Virgem.
A conversação entre ambos foi bem diferente daquela em que se tinham defrontado nas terras de Além Tejo, em Portugal. 

O pai de Francisca parecia outro. Mais calmo. Mais crente. Mais humano.
Convenceu o jovem Fernando a que o deixasse levar a imagem e o acompanhasse. Depois ajudado por muitos outros bons cristãos, ergueu uma capelinha bonita em honra de Nossa Senhora. Uma capelinha de flores. Rodeada de flores. De flores viçosas...
E daí ter-se chamado ao lugar o Vale Viçoso, primeiramente; e depois a Terra Viçosa; e por fim, quando a povoação cresceu em importância, Vila Viçosa. E foi também em recordação do moço pastor Fernando e da sua maravilhosa aventura, que se fundou em Córdova a Confraria de Nossa Senhora de Vila Viçosa.

Fontes

MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 333-340