sexta-feira, 28 de julho de 2017

Praça da República

A Praça Nova de São Bartolomeu ou Praça da Rainha D. Amélia (atual Praça da República), no final do século XIX.

Centro cívico e lugar de encontro, aqui funcionava o mercado, durante esse período. Este espaço foi profundamente modificado nos anos 40 do século XX, com a criação da Praça monumental, entre a Igreja de São João Evangelista (São Bartolomeu) e o Castelo. Ainda hoje, decorada com laranjeiras, constitui um espaço de referência no quotidiano de Vila Viçosa.

FOTO - Grupo "Amigos de Vila Viçosa"


quarta-feira, 26 de julho de 2017

ESTAÇÃO DOS CAMINHOS-DE-FERRO DE VILA VIÇOSA

Construída em 1904, foi inaugurada no dia 1 de Agosto de 1905. Encontra-se situada no Campo do Carrascal. Foi uma interface ferroviária do Ramal de Vila Viçosa, que servia a localidade e o concelho.

O edifício da estação integra dez painéis de azulejos, que representam o corte da cortiça, a entrevista do oitavo Duque de Bragança, D. João II, com D. Pedro de Mendonça, do Movimento dos Conjurados, antes de 1640; Alentejo - acarreto do trigo, carreiro dá água ao gado e o trigo na eira; Terreiro do Paço; Ceifa do trigo; Panteão das Duquesas e recolha da palha, todos da autoria de G. Rendas.

Desde a sua abertura, esta estação foi inserida numa zona especial de tarifas de transportes de cortiça, com destino ao Barreiro. A família real fez várias viagens até Vila Viçosa, utilizando um comboio especial rebocado pela locomotiva D. Luíz.  

Foi daqui que partiu o Rei D. Carlos para Lisboa, juntamente com a sua família, no dia 1 de Fevereiro de 1908, data da sua morte. De facto, o Rei, D. Amélia e o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, tinham vindo até ao Paço de Vila Viçosa, como era habitual, para a temporada de caça do inverno. O Príncipe D. Manuel tinha partido dias antes para a capital do Reino.

Em 1948, a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses colocou ao serviço várias automotoras de origem sueca entre Casa Branca (Escoural/Montemor-o-Novo) e Vila Viçosa, serviço que durou até ao início da década de 90 do século XX. Muitos calipolenses utilizavam este meio de transporte nas deslocações para Estremoz, Évora e Lisboa.

No dia 5 de Janeiro de 1990 (passados 85 anos) fechou as suas portas.




segunda-feira, 10 de julho de 2017

A VERDADEIRA ORIGEM DO SERICÁ: ÍNDIA, BRASIL, VILA VIÇOSA OU ELVAS?

Iguaria há muito consagrada no panorama da doçaria nacional, o sericá continua, em certo sentido, a ser um mistério, no que diz respeito à sua origem. Os factos que em seguida apresentamos podem trazer alguma luz relativamente a essa questão, na medida em que os documentos consultados comprovam que, se o doce chegou pela primeira vez a Vila Viçosa,  vindo da Índia, foi a partir de Elvas que se difundiu e notabilizou.
Mais importante do que reivindicar direitos sobre proveniência do sericá, é constatar a sua importância do ponto de vista histórico, tendo em conta a forma como veio do Oriente até Portugal. Os dados que aqui apresentamos foram recolhidos pelo Dr. Fernando Duarte, a quem quero agradecer a colaboração sobre este tema. Este receituário está integrado nos maços de Miscelânea do Convento de Santa Clara de Elvas, que se encontravam na Torre do Tombo.

História do Sericá

Segundo o Receituário de Convento de Santa Clara de Elvas, datado de 1623, na 3ª parte, fólio 4, consta a receita da Sericaia, a par da sua introdução nesta Casa Religiosa.
Segundo a mesma receita, este doce fora trazido das partes do Oriente para o Reino, pelo Vice-Rei D. Constantino de Bragança no ano de 1562.

Era coisa tida nas partes do Oriente, tendo provindo de Malaca para Goa, por posse dos Padres Jesuítas, que a fizeram às freiras do Convento de Santa Mónica, as quais desde cedo a muniram, sendo muito apreciada entre as gentes de bem da dita Praça.
Do governo de Goa por D. Constantino, ia esta à sua mesa, sendo de bem e gosto por este tomada. De vinda ao reino e tomando a sua casa na Vila Viçosa, na era de (1)562 a entregou às Irmãs de Santa Clara do Convento das Chagas de Christo da dita Vila, a qual a muniram de modo na sua terra. Viera para esta Casa de Santa Clara de Elvas, no ano de 1584, por obra da nossa admirada Irmã Maria da Purificação, que a passou a munir nesta Casa e desta para as demais da nossa Ordem nas partes do Alentejo”

A receita original

De Sericai(a)[1]
Canada grande de leite espesso
Catorze de ovos grandes
Malga de 5 de açúcar pardo
Malga de 2 de arroz de farinha
1 de lima
De gusto cheio de canela
De leite em tacho de cobre com parte de casca e pau de canela, por levantar e deixar ao frio. Depois de ovos quebrar em gema e branca, por coar de gema em peneira fina a leite mexer com a parda e a farinha passada de peneira, para ajuntar em frio e a lume de baixo levar por sempre acremar, com PNAVM[2] por conta.
De creme bem frio estar, das brancas levar até nuvem e ai por a raspa da parte de sobra com o sumo da parte da lima, e a nuvens levar.
De unir a creme com as nuvens, em leva alta.
De prato estanhado[3] com unto gordo de vaca, por coberta de peneira de farinha por dispersas às partes de leva alta, do meio para as bordas, e de canela de pó em farta por cima cobrir.
Para forno de quente em chama assar até levantar e quebrar em sol.

A interpretação da receita original

1 litro de leite gordo
14 ovos grandes
350 gr açúcar amarelo
125 gr de farinha de arroz
1 limão
Canela quanto baste
Ferve-se o leite com metade da casca do limão e um pau de canela. Deixa-se arrefecer e retira-se a casca e o pau.
Separam-se as gemas das claras, sendo as primeiras coadas para se lhes remover os folículos, adicionando-as ao leite, juntamente com o açúcar e a farinha. Liga-se tudo muito bem coando-se de seguida para remover eventuais grumos.
Leva-se a lume brando, mexendo sempre, até se obter um creme. Deixa-se arrefecer bem.
À parte, batem-se as claras em castelo, e adiciona-se-lhes a raspa do resto da casca e metade do sumo do limão, e tornam-se a bater em castelo.
Envolvem-se muito bem as claras batidas no creme, até se obter uma massa fofa, que se vai deitando às colheradas grandes em pratos de barro, previamente untados com manteiga e polvilhados com farinha de arroz.
Polvilha-se com canela em pó abundante até cobrir por completo a massa e leva-se a forno bem quente. Esta está cozida quando apresentar a superfície aberta e quebrada.

Quem foi D. Constantino de Bragança?

Elemento da Sereníssima Casa de Bragança, D. Constantino (1528-1575) provavelmente nascido em Vila Viçosa, filho do quarto Duque D. Jaime, desempenhou o cargo de Vice-Rei da Índia, entre 1558 e 1561.
Estes três anos foram marcados por importantes feitos militares e políticos, num contexto onde a Coroa Portuguesa tinha objetivos económicos bem definidos e onde ficou mais uma vez clara a influência política da Casa de Bragança no panorama nacional. O seu meio-irmão D. Teodósio I, quinto Duque de Bragança, teve uma ação determinante nesta escolha. A conquista da cidade de Damão e os territórios envolventes em 1558 foram alguns dos seus feitos mais significativos.
Graças ao seu desempenho, foram implementadas diversas reformas, que contribuíram para uma reorganização dos serviços públicos, contenção das despesas e aumento das receitas fiscais no Estado da India.
A história dos Portugueses no Oriente foi feita com sangue, honra, coragem, determinação e por vezes, intolerância. D. Constantino, provavelmente nascido em Vila Viçosa, personificou todas estas características e marcou, para sempre, a ligação de Vila Viçosa ao Oriente no século XVI.
Personalidade pouco conhecida da Casa de Bragança, D. Constantino teve um papel político fundamental na Índia na segunda metade do século XVI. Figura polémica e incontornável da História de Portugal, terá nascido em Vila Viçosa no ano de 1528.
Foi o quarto filho que o Duque D. Jaime e de D. Joana de Mendonça, sua segunda mulher,  filha de Diogo de Mendonça, Alcaide-mor de Mourão e de  Brites Soares de Albergaria. Não tinha ainda vinte anos, quando em 1548 foi designado como embaixador a França, representando o rei D. João III no batismo dum filho de Henrique II.
A 5 de Maio de 1557, D. João III nomeava-o para Camareiro-mor de D. Sebastião[4]. Enquanto ocupou este cargo, D. Constantino tinha sob sua jurisdição todos os empregados da câmara real, como os pajens da campainha e da lança, os moços das chaves, os porteiros e os moços do guarda-roupa. Era sua responsabilidade vestir e despir D. Sebastião e dispunha de aposentadoria no Paço Real. Nos atos de juramento e das Cortes levava a falda e assistia postado atrás da cadeira[5].
Foi nomeado membro do Conselho Real e comendador da Ordem de Santiago. Constantino de Bragança era de estatura pouco mais que mediana, largo de ombros e barba de alta nobreza.[6] Nessa altura, surge a necessidade de nomeação de um governador para a Índia e D. Constantino, através do Duque D. Teodósio I, é indigitado para o cargo pela regente do reino, D. Catarina de Áustria, viúva de D. João III, a 3 de Março de 1558, contando apenas com 30 anos de idade. Sucedeu a D. Francisco Barreto e foi o primeiro Vice-Rei do reinado de D. Sebastião.
Diz o Padre Espanca que levou para a Índia muitos dos seus conterrâneos de Vila Viçosa[7], nomeadamente o capitão de fusta Apolinário de Valderrama, que teve uma ação militar importante neste contexto até 1574 e Sebastião de Sousa de Abreu, Alcaide-mor de Borba[8].
A história do seu governo como Vice-Rei foi intensa, tendo-se recolhido muitos frutos da sua boa administração, como refere Diogo do Couto nas Décadas.[9] Foi o 20º Governador da Índia e o 7º com o título de Vice-Rei. Segundo Aquilino Ribeiro, demonstrou ser um moralizador austero, profundamente religioso prudente, verdadeiramente soberano sem ser déspota.[10]
Foi numa quinta-feira Santa, dia 7 de Abril de 1558, que partiram quatro naus de Belém: Garça, capitaneada por D. Paio de Noronha, onde ia D. Constantino de Bragança, a Rainha, cujo capitão era Aleixo de Sousa Chichorro, conselheiro do Vice-Rei e vedor da Fazenda Real, a nau Tigre, capitaneada por Pero Peixoto da Silva e da Castelo, Jácome de Melo.  Chegaram a Goa a 3 de Setembro de 1558. Entre a tomada de Goa por Afonso de Albuquerque em 1510 e a entrega do governo a Constantino de Bragança por Francisco Barreto em 1558 passaram 48 anos. Neste curto espaço de tempo a cidade tomara uma feição europeia. Os portugueses haviam fundado uma grande metrópole, com soberbos edifícios, igrejas, mosteiros, palácios e fortalezas. Era uma cidade eclesiástica por excelência. E foi esta a urbe que Constantino encontrou.[11] Viera governar um Império de 5000 léguas de costa, onde os povos asiáticos, antes inconciliáveis, se coligaram pela necessidade de lutar contra os portugueses.[12]
O novo Vice-Rei fez-se acompanhar por 2000 homens de armas, tendo sido muito bem recebido e equiparado a Príncipe natural[13]. D. Francisco Barreto, seu antecessor no cargo, deixou como herança a D. Constantino uma armada muito poderosa, composta de 25 galeões e caravelas, 10 galés e mais de 70 galeotas e fustas. Todas estas naves de guerra estavam equipadas e municiadas de pólvora e mantimentos, assim como capitães e tripulação, prontos a levantar ferro em qualquer momento.[14]
 A 2 de Fevereiro de 1559, o 7º Vice-Rei da Índia, chefiando uma poderosa armada, conquista Damão e toma também a fortaleza vizinha de Balasar (localizada no atual Estado Indiano de Gujarate).
Segundo as crónicas, os locais abandonaram a cidade assim que se tornou visível a intimidatória presença portuguesa, composta por cerca de 100 naus. Este passo foi fundamental para assegurar a segurança dos territórios circundantes a Baçaim.[15] Com este sucesso militar, os Portugueses alargaram a Província do Norte, aumentado o território sob seu domínio. Neste período as receitas fiscais oriundas da produção agrícola aumentaram substancialmente e ganharam um peso importante nos orçamentos do Estado da India.[16] O período passado em Goa foi marcado por uma intensa atividade política e militar.
Depois destes acontecimentos, D. Constantino virou as atenções do Estado da Índia para o Jafanapatão, cujo reino era inimigo dos portugueses. Nesse mesmo ano, é tomada a cidade de Jafanapatão, conquista mais tarde abandonada devido à resistência dos naturais do local. Este feito militar, baseado na expedição organizada por D. Constantino, marcou um episódio importante no que concerne à capacidade bélica dos Portugueses no Oriente, Ficou nos anais da história o episódio havido com um relicário indiano que os Portugueses retiraram de um pagode[17] e levaram para Goa.
Tratava-se de um dente de Buda. Em 1561 chegaram a Goa embaixadores do Rei do Pegú, com a finalidade de resgatar a relíquia. Foram transportados na nau de Martim Afonso de Melo. Vinham negociar o resgate do dente de Buda, cativado na tomada de Jafanapatão. Vinham autorizados a pagar pelo dente 400.000 cruzados.
 D. Constantino esteve tentado a ceder, mas o Arcebispo D. Gaspar implorou-lhe que não o fizesse e que tal ato colocava em causa a honra de Deus e dos Portugueses. D. Constantino, homem prudente e circunspecto, zelador da fazenda pública, convocou o Conselho geral, espécie de parlamento, para que fossem ouvidas todas as opiniões. Assistiram os primeiros representantes da Igreja, além do Arcebispo, os dois inquisidores, o vigário geral de São Domingos, o custódio de São Francisco, o Padre António de Quadros, provincial na India da S.J. e o Padre Francisco Rodrigues.
O debate não foi longo, embora estivesse em causa um precioso objeto do culto idólatra armado em relicário. Desde o remoto Sião que vinham a Jafana ano após ano embaixadas especiais para moldar o objeto em âmbar, cera, almíscar, que eram depois colocados em cofres de ouro e sândalo e venerados por brâmanes e rajás. Chamava-se Deleda e estava ornamentado com ouro fino, gemas e pedras preciosas. Atribuíam-se à relíquia os mais prodigiosos milagres. Os capitães foram da opinião que, dado o estado precário do erário público, o dente devia ser vendido. Os eclesiásticos, pelo contrário, foram da opinião que a relíquia não deveria ser devolvida, por questões de moral e de religião.
Votada esta moção e lavrada a ata, o Vice-Rei mandou que lhe trouxessem o dente mágico. Colocou-o então dentro de um almofariz que passou a D. Gaspar. Este ergueu o pilão e triturou e moeu o dente até este ficar em pó.[18]
Trata-se de um episódio que demonstra bem a intolerância religiosa desse período.
Com esta ação, D. Constantino eternizou a fama da cristandade portuguesa por todas as nações do Mundo. Era D. Constantino o melhor português que passou pela Índia e esta foi a maior proeza dos portugueses, segundo D. Manuel de Meneses, cronista de D. Sebastião.[19] Contudo, este facto reacendeu o rancor das populações asiáticas contra os portugueses. O episódio do dente do Buda foi diversamente apreciado no Reino.
As iniciativas que D. Constantino promoveu e aplicou no Estado da India demonstram que o recurso às armas continuava a ser uma constante para aumentar os domínios, na lógica de concretização de uma política de territorialidade[20].
No expediente dos demais negócios da Índia, andou D. Constantino com rigoroso despacho e economia. Enquanto Vice-Rei, terá ajudado Luís Vaz de Camões. O poeta, soldado da Índia, consagrou a Constantino uma ode em decassílabos, que figura já nas Rythmas, impressas por Manuel de Lira em 1595. Segundo Aquilino Ribeiro, D. Constantino terá protegido Luís de Camões, embora não existam provas concretas desse facto[21]. Em 1561 chega a Goa D. Francisco Coutinho, Conde do Redondo, para suceder no cargo de Vice-Rei a D. Constantino, que no final desse ano regressa a Lisboa. Regressou ao Reino na Nau Chagas, que tinha mandado construir com o nome do convento fundado em Vila Viçosa pelo seu pai, D. Jaime e onde tinha duas irmãs freiras. O seu governo durou três anos e oito dias. Durante este tempo, restabeleceu a ordem nas finanças, e realizou importantes reformas na administração do Estado da India.
Depois de chegar ao reino, deram-lhe a Capitania de Cabo Verde, a qual arrendou para se recolher em Estremoz na companhia da sua mulher, D. Maria de Melo, filha de D. Rodrigo de Melo, 1º marquês de Ferreira e 1º conde de Tentúgal, e de D. Brites de Menezes, com quem casara em 1552.
Em 1571, El-Rei D. Sebastião pediu a D. Constantino para voltar à Índia, mas este delicadamente se escusou por se encontrar já velho para ter êxito na missão que o Rei lhe propunha. A velhice passou-a em Vila Viçosa. Faleceu a 14 de Julho de 1575 e foi sepultado na igreja das Chagas, nesta localidade.
Segundo Diogo do Couto, D. Constantino foi homem de meia estatura, forte, barbudo, brando e afável, muito religioso, amigo da justiça, verdadeiro e casto. Não enriqueceu na Índia, nem usou o cargo que ocupou em proveito próprio, o que parece ter causado alguma estranheza na metrópole.

O CONVENTO DAS CHAGAS DE VILA VIÇOSA

Não é de estranhar que a receita do sericá, trazida por D. Constantino de Bragança, viesse para Vila Viçosa, no seu regresso da India. Era aqui a sede da poderosa Casa Ducal e no Paço, construído pelo seu pai, D. Jaime, em 1501, residia uma notável e influente corte humanista. No convento, encontrava-se também uma das suas irmãs, Maria das Chagas, facto que também poderá ter influenciado a introdução do sericá neste espaço religioso.
Maria das Chagas era a segunda filha do quarto Duque de Bragança D. Jaime e de sua segunda mulher, D. Joana de Mendonça. Foi a primeira freira professa no Convento das Chagas de Vila Viçosa.
Professou na quarta-feira de Cinzas do ano de 1533, no mesmo ano em que se inaugurou a comunidade da mesma casa, proferindo os votos nas mãos de sua tia e primeira Abadessa, Maria de São Tomé, irmã de sua mãe. Não contava ainda uma dúzia de anos de idade, nem fez o noviciado prévio.
Foi a responsável pela introdução da reforma clarissa nos Conventos da Esperança de Vila Viçosa e de Ara Coeli de Alcácer do Sal. Em 1542, inaugurou em Borba o Convento de Nossa Senhora das Servas, com as Madres Ana de Cristo, Jerónima do Espírito Santo e Joana da Madre de Deus, as três filhas de D. Diogo de Melo e de D. Isabel de Mendonça, fundadores daquele convento, com o Padre Pedro Cordeiro e mais três religiosas e duas educandas.
Em 1567, a instâncias do Cardeal D. Henrique, foi introduzir a Regra de Santa Clara no Convento de Coimbra, do mesmo título de São Francisco.
Regressou ao fim de três anos a Vila Viçosa e foi recebida pelas companheiras com um Te Deum em Acção de Graças. Faleceu a 6 de Julho de 1586 e jaz no coro baixo da Igreja das Chagas.
O Convento das Chagas foi fundado precisamente pelo quarto Duque de Bragança, D. Jaime e foi entregue à Ordem de Santa Clara. A vida claustral começou em 1535, com a chegada de oito religiosas do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja, sob proteção da Duquesa viúva, D. Joana de Mendonça, mãe de D. Constantino e do futuro Duque, D. Teodósio I. Estas freiras traziam consigo os segredos da doçaria conventual, com o açúcar que vinha do Brasil.
Este convento foi o mais importante de Vila Viçosa, na medida em que quase todas as freiras provinham das melhores famílias do Alentejo e do Reino. No seio da sua humilde comunidade, tomaram o hábito de clarissas algumas das mais nobres senhoras de linhagem do Alentejo. Apesar do despojamento desta ordem mendicante, as diversas doações fizeram do convento uma das mais ricas e opulentas casas religiosas nacionais.  A maioria das freiras custeou a construção de moradias privativas e oratórios.
O Convento tornou-se uma verdadeira referência em termos da doçaria conventual. Talvez devido à riqueza dos seus manjares, D. João III haja feito a mercê, em 1542, de “seis arrobas de açúcar por ano”. Para além da Tiborna, são provenientes deste convento o Toucinho-do-Céu, o Manjar das Chagas, o Toucinho dos Duques, as Biscoitinhas, as Fatias Duquesa, as Broas das Chagas e as Barrigas de Freira.[22]
Nos nossos dias, encontra-se instalada no Convento a Pousada D. João IV, onde é possível provar todas estas excelentes receitas de doçaria conventual. Portanto, são vários os motivos para visitar Vila Viçosa. Para além dos monumentos, também a gastronomia (e neste caso, a doçaria conventual), são referências incontornáveis.

Bibliografia

BOXER, C., The Portuguese Seaborne Impire, 1415-1825, Carcanet Press, London, 1991.
COSTA, João Paulo Oliveira e Costa (coord.), Rodrigues, José Damião, Oliveira, Pedro Aires, História da Expansão e do Império Português, p. 150, Esfera dos Livros, Lisboa, 2014.
COUTO, Diogo do, Da Ásia, VII, viix, Lisboa, Livraria San Carlos, 1974;
COUTO, Diogo do; Caminha, António Lourenço (1808). Obras inéditas de Diogo do Couto [New works by Diogo do Couto] (in portuguesa). Imperial e Real.
CUNHA, Mafalda Soares da, “A Casa de Bragança e a Expansão, Séculos XV-XVII” in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia, actas do colóquio internacional, edição organizada por João Paulo Oliveira e Costa e Vítor Luís Gaspar Rodrigues, Lisboa, CHAM, 2004.
EÇA, Duarte de, Relação dos Governadores da Índia (1571), edição de R. O. W. Goertz (Codex Goa 38), Calgary, University Printing Series, 1979, pp. 13-15
ESPANCA, Pe. Joaquim José da Rocha — Compêndio de Notícias de Villa Viçosa. Redondo: Typ. F. Carvalho, 1892.
ESPANCA, Pe. Joaquim José da Rocha — Memórias de Vila Viçosa. Vila Viçosa: Câmara Municipal de Vila Viçosa, 1983 (Cadernos Culturais; nºs. 5, 6 e 7).
FRIAS, António João de, Aureola dos indios & nobiliarchia bracmana: tratado historico, genealogico, panegyrico, politico & moral. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1702.
MATOS, Artur Teodoro, Na rota da India. Estudos de História da Expansão Portuguesa, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1994.
PEREIRA, António dos Santos, A Índia a preto e branco: uma carta oportuna, escrita em Cochim, por D. Constantino de Bragança, à rainha D. Catarina in Anais de História de Além- Mar, vol. IV, edição de João Paulo Oliveira e Costa, Lisboa, CHAM, 2003, pp. 449484;
RIBEIRO, Aquilino, Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da India, Lisboa, Portugália Editora, 1947.
SOUSA, Manuel de Faria e, Ásia Portuguesa, tradução de Manuel Burquets de Aguiar, Volume III, capítulo XIV, Porto, Livraria Civilização, 1945.





[1] De convento para convento, as medidas variavam, não sendo tidas por massa, mas sim por volume e quantidade.
[2] O tempo era contado ao som de Pai Nossos e Ave Marias, ditos com convicção.
[3] À data utilizavam-se pratos de cobre estanhados, já fora de uso, passando-se a utilizar pratos de barro vermelho vidrado, simulando-se assim os originais de metal vermelho.
[4] ANTT, Chancelaria de D. João III, livro 71, folha 243
[5] RIBEIRO, Aquilino, Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da India, Lisboa, Portugália Editora, 1947.
[6] Ibidem. P 10
[7] ESPANCA, Pe. Joaquim José da Rocha — Compêndio de Notícias de Villa Viçosa. Redondo: Typ. F. Carvalho, 1892.
[8] Sebastião de Sousa d’Abreu tomou parte na expedição da Alcácer-Quibir, era Camareiro-mor de D. Teodósio II e foi capitão de Diu, cujo governo chefiou até 1597. Foi morto por um touro no Terreiro do Paço em Vila Viçosa
[9] COUTO, Diogo do, Da Ásia, VII, viix, Lisboa, Livraria San Carlos, 1974
[10] RIBEIRO, Aquilino, Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da India, Lisboa, Portugália Editora, 1947, p. 3
[11] Ibidem, p. 24
[12] Ibidem, p. 35
[13] SOUSA, Manuel de Faria e, Ásia Portuguesa, tradução de Manuel Burquets de Aguiar, Volume III, capítulo XIV, Porto, Livraria Civilização, 1945.
[14] RIBEIRO, Aquilino, Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da India, Lisboa, Portugália Editora, 1947, p.46
[15] www.fcsh.unl.pt/cham/eve/content.php?printconceito=748, texto da autoria de Nuno Vila Santa.
[16] MATOS, Artur Teodoro, Na rota da India. Estudos de História da Expansão Portuguesa, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1994
[17] Tipo de torre ou edifício com múltiplas beiradas, muito comum no Oriente e que tinha fins religiosos
[18] RIBEIRO, Aquilino, Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da India, Lisboa, Portugália Editora, 1947, p.384-385
[19] Ibidem, p. 384-387
[20] COSTA, João Paulo Oliveira e Costa (coord.), Rodrigues, José Damião, Oliveira, Pedro Aires, História da Expansão e do Império Português, p. 150, Esfera dos Livros, Lisboa, 2014.
[21] RIBEIRO, Aquilino, Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da India, Lisboa, Portugália Editora, 1947, p. 339
[22] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129


                                               
                                                                            Sericá
                                                     (colaboração da Pousada D. João IV)


                                      Igreja e Convento das Chagas de Cristo de Vila Viçosa



                   Sericá no Claustro do Convento das Chagas (colaboração da Pousada D. João IV)



                                         D. Constantino de Bragança, 7º Vice-Rei da Índia


                                               Sericá (colaboração da Pousada D. João IV)




                                                              Claustros do Convento das Chagas de Vila Viçosa

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Estátua de D. João IV em Vila Viçosa

A estátua equestre de D. João IV foi inaugurada no dia 8 de Dezembro de 1943 ( e não em 1944). Trata-se de uma obra que se encontra no Terreiro do Paço em Vila Viçosa, com a altura de 6 metros. É uma obra de bronze da autoria do escultor madeirense Francisco Franco. O pedestal de granito da base foi concebido pelo arquiteto Pardal Monteiro.




quarta-feira, 5 de julho de 2017

A DRAMÁTICA HISTÓRIA DAS QUATRO CRUZES

Quase todos os Calipolenses conhecem esta história, que se tornou lendária e com várias versões. A que conto nestas linhas é da autoria do Padre Joaquim Espanca, que viveu de perto estes trágicos acontecimentos…
Corria o ano de 1838…
Por aqueles dias, aquartelou-se no Castelo de Vila Viçosa o regimento de Infantaria 4º, comandado pelo Tenente João Caldeira. Três soldados deste destacamento começaram a dar uns passeios vespertinos até à Quinta da Fonte da Cebola de Baixo, situada a oriente de Vila Viçosa. Tratava-se de um lugar inóspito e nada convidativo a caminhadas.
O hortelão e a sua mulher, por serem hospitaleiros, disponibilizavam merendas de frutos aos referidos soldados, que ali se deslocavam quase diariamente. Havia portanto entre os soldados e a família do hortelão um princípio de amizade.
No dia 19 de Dezembro, o hortelão, chamado João Baptista Picanço, veio logo de manhã ao mercado semanal de Vila Viçosa para vender quatro ou cinco porcos e assim poder pagar ao senhorio a renda anual da quinta. A venda dos suínos era feita no Rossio, onde foi visto pelos três soldados. Cumprimentaram-se e trocaram algumas palavras. O hortelão demorou-se aqui até ao meio dia e, como não conseguiu vender os porcos, ordenou ao seu filho que os levasse de volta a casa.
José Vicente, um dos três soldados, com a ganância de ficar com o dinheiro que João Baptista Picanço tivesse arrecadado pela venda dos porcos, chamou os outros dois camaradas de armas e engendrou um plano para que fossem nessa noite assaltar-lhe a casa e roubar o dinheiro (que não realidade não existia). Como eram todos da mesma laia, concordaram com o plano, que parecia fácil e lucrativo.
Ao cair da noite, vestidos com capotes de pano pardo e armados com baionetas e espingardas, saíram pela Porta de Olivença (no Castelo), passaram pelos ferragiais de São Domingos e pelo Pinhal de El Rei, para chegarem até à Quinta da Fonte de Cebola de Baixo.
Seriam quase oito da noite, o que em Dezembro significa noite cerrada.
O hortelão daquelas paragens solitárias acabava de cear com a família, depois de terem cerrado a porta logo ao anoitecer, como eram costume nas habitações dispersas pelos montes que circundavam Vila Viçosa. Acercavam-se todos na chaminé, regalando-se no pino do Inverno com um bom lume. Os homens conversavam e as mulheres rezavam o terço.
No silêncio da noite, eis que de repente, se ouve bater na porta da casa!
Toda a família ficou assustada, pois naquelas paragens solitárias, fora de horas, todas as aproximações são suspeitas.
- Quem é? – pergunta o hortelão.
- Abra a porta!
- Eu não abro a minha porta de noite!
- Abra a porta, em nome da Rainha! – vocifera um dos bandidos engrossando a voz.
- Já disse! Não abro a minha porta fora de horas!
- Abra a porta ou deitamo-la abaixo!
E começaram os bandidos a dar coronhadas na porta.
O camponês estremeceu de susto. Ocorreu-lhe então que pudessem ser soldados a fazer alguma diligência e disse para a sua mulher:
- É a tropa! Vou abrir!
A mulher, como que adivinhando a catástrofe que os esperava, rogou ao marido para que este não abrisse a porta. Mas os de fora instavam também, de forma mais agressiva e determinada:
- Abra a porta em nome da Rainha!
João Baptista Picanço levanta-se e destranca a porta, pega na chave e dá-lhe meia volta para a abrir. Enquanto fez isto, levantou-se também da chaminé o seu sobrinho José Joaquim Picanço, que achou prudente não assistir àquela visita domiciliária tão suspeita. Era melhor opção recolher-se mais cedo para o palheiro onde costumava dormir, juntando-se ao criado Daniel Boquinhas, que já lá se encontrava.
Essa saída foi feita por um buraco rasteiro da casa e que dava passagem para o palheiro e para a cavalariça. Este procedimento era muito utilizado nos montes alentejanos, a fim de poderem ser trancadas por dentro as portas das cavalariças e deste modo ficarem mais seguras.
Quando o hortelão abriu a porta da casa, logo o bandido lhe infligiu um golpe tão violento na cabeça, que lhe enterrou os fechos no crânio, fazendo-o cair de costas, morto…
À vista deste triste cenário, levanta-se a mulher em prantos e aos gritos de socorro, sustentando nos braços um filho de três anos, que afagava enquanto se aqueciam na chaminé. E logo o segundo bandido lhe deita as mãos às orelhas, para lhe roubar os brincos… Assim que os retirou, os bandidos trespassaram-na a golpes de baioneta, deixando-a estendida ao pé do cadáver agonizante do marido. Também o filho mais novo sofreu o mesmo destino…
Eram já três os cadáveres que se encontravam no meio da casa. Restava uma filha com vida, já mulher feita e um seu irmão mais novo, ainda adolescente. Enquanto os bandidos José Nascimento e José Cotovio perpetravam as mortes referidas, o chefe dos bandidos, José Vicente, guardava a porta da rua, para que ninguém passasse por ela.
Nem uma perdiz que se encontrava numa gaiola no interior da casa escapou à fúria dos assaltantes. Os bandidos decidiram então não executar a filha e a filha, a fim de saberem onde se encontrava o dinheiro da venda dos porcos e mais algum valor que pudessem encontrar.
Como estes responderam que a venda dos porcos não se havia concretizado, ordenaram à filha que esta abrisse as arcas onde apenas estavam uns vestidos de chita e outras roupas de escasso valor.
Porém, neste instante, o seu irmão, tremendo de susto e de horror, deixa cair da mão a candeia com que alumiava as ditas arcas. No meio da escuridão, o rapaz teve o feliz pensamento de esgueirar-se pelo buraco que dava acesso ao palheiro, escapando assim dos facínoras, juntando-se assim ao primo José Joaquim. O criado Daniel Boquinhas já não se encontrava no local, por ter fugido. É um mistério como o bandido José Vicente, à porta da casa, não deu por esse movimento…
Acendida de novo a candeia, perguntavam os bandidos pelo rapaz, de nome José da Conceição, que já ali não se encontrava.
Foram até à porta, perguntando ao chefe José Vicente o que tinha acontecido sobre a fuga do moço. Este jurou que não tinha fugido pela porta. Nomeio da discussão, acabaram por assassinar a donzela. Houve quem afirmasse que tinha sido violada, antes do homicídio.
No entanto, os meliantes, em vez de se preocuparem em gastar o tempo em vãs disputas , com acusações mútuas sobre quem teria deixado escapar o rapaz da família martirizada, não verificaram a outra porta da cavalariça e do palheiro, onde o mesmo se tinha escondido.
Em vez disso, arrumaram a trouxa e puseram-se a caminho do Castelo.
No regresso, o criado Daniel Boquinhas, escondido no meio de um sobreiro, oculto na espessura da ramagem, viu-os passar e ouviu a discussão entre os três bandidos, que se acusavam mutuamente sobre a fuga do mancebo José da Conceição.
- O rapaz vai ser a nossa perdição! – dizia um deles.
E assim seguiram caminho, lastimando na retirada para o Castelo os factos ocorridos, o remorso dos crimes e o temor dos castigos.
Depois de se terem afastado o suficiente, o criado Daniel desceu da árvore e aproximou-se da casa do seu amo, para certificar-se da tragédia. Chegando à porta da cavalariça,  bateu e chamou por José Joaquim. Este, reconhecendo-lhe a voz, não hesitou em abrir-lhe a porta.
Reunidos os três que tinham escapado (o filho José da Conceição, o sobrinho José Joaquim e o criado Daniel), entraram pelo buraco que fazia a passagem da cavalariça para a casa principal e ai se depararam com um cenário de horror: todos jaziam já cadáveres.
Quatro corpos ensanguentados, poças de sangue, um filho que sobreviveu, afogado em prantos e em suspiros, um sobrinho soluçando e um criado lastimando a cruel sorte dos seus amos.
Todos à luz mortiça de uma triste candeia já entornada e prestes a apagar-se numa fria noite de Inverno.
Num acto determinado, resolve José da Conceição deixar o monte e sair com Daniel, para darem parte do sucedido ao seu Tio Cipriano José Picanço, rendeiro da Quinta do Mocho, não muito distante dali. Ficou José Joaquim acompanhando os cadáveres que tinham ficado no chão.
Quando começou a raiar o dia, partia Cipriano da Quinta do Mocho para a Fonte de Cebola de Baixo, seguindo depois para Vila Viçosa. Vinha queixar-se ao administrador do Concelho, Domingos Alves Torres, dos roubos e das mortes daquela fatídica noite.
Vila Viçosa fica em sobressalto. Cipriano grita pelas ruas, como um louco:
- Justiça! Justiça!
Muitos correm ao lugar do sinistro. O Administrador do Concelho promove a marcha imediata de uma escolta para guardar a quinta, até que as autoridades judiciais redigissem o auto inicial do delito. Foi já cerca do meio-dia que as ditas autoridades chegaram ao local, para examinarem os cadáveres.
Vivia-se, na época, um clima de desconfiança entre Liberais e Absolutistas (a Guerra Civil havia terminado em 1834) e suspeitou-se que tivessem sido os Miguelistas os responsáveis por tão horrendo crime.
- Aqui está o que fazem os Miguéis! – proferiu o Tenente João Caldeira, que integrava o corpo das autoridades judiciais.
Todos os presentes pareceram concordar com esta acusação, quando José da Conceição, o filho sobrevivente de João Baptista Picanço, ouvindo o diálogo entre as autoridades, retorquiu ao Tenente, dizendo-lhe:
- Não, senhor, não foram esses homens que mataram os meus pais e os meus irmãos. Foram esses soldados que vossemecê ai trás.
João Caldeira ficou estupefacto, olhando para o Juiz Ordinário e para o Subdelegado. Todos ficaram surpreendidos, mas logo o Tenente, melindrado com aquela acusação e querendo mostrar-se imparcial, pergunta ao rapaz:
- Tu conheces os soldados?
- Conheço sim, porque eles até vinham dantes à nossa casa!
- Pois vem aqui ver se é algum destes! – prosseguiu João Caldeira, mandando formar a escolta. O rapaz olhou para todos e concluiu que não era nenhum daqueles.
Concluído o auto do corpo de delito, foi montado José da Conceição num jumento e levado para o Castelo, onde se formou todo o destacamento de infantaria nº 4, para que pudessem ser reconhecidos os três facínoras.
- Aqui está o primeiro – disse ele, percorrendo as fileiras com o Tenente; - e aqui está o segundo!
Porém, quanto ao terceiro, hesitou na acusação, designando um soldado conhecido como “Calvário”, que logo após o dedo acusador, clamou pela sua inocência.
- Rapaz, vê bem que não fui eu! Estou inocente!
Interveio então o Tenente, dizendo:
- Bem, bem, pelos dois eu já tiro o terceiro! Qual é o número do que falta aqui?
- Está no quartel, doente!
- Pois que venha! Vai chamá-lo!
Vindo pois o tal Cotovio, mostrando-se muito doente e avistando-o José da Conceição ao descer a escada para a praça de armas, gritou logo:
- É este mesmo! Não há dúvida!
E o Calvário começou logo a respirar mais tranquilo.
José Cotovio mostrava sinais evidentes do crime: o capote estava ensanguentado e a baioneta, apesar de ter sido limpa, mostrava ainda sinais de sangue. Quando tirou o chapéu da cabeça, logo lhe caíram os brincos que tinha roubado à mulher do hortelão.
Descobertos os assassinos, logo veio uma escolta para os acompanhar até à cadeia civil, onde não tardaram a confessar o seu crime., declarando onde estavam as trouxas de roupa que tinham roubado e que se encontravam no interior da Fortaleza- Artilheira.
Enquanto isso, dava entrada no Rossio, em direção ao cemitério de São José (onde se encontra atualmente a Mata Municipal), uma carroça conduzindo os quatro cadáveres. O chefe da desventurada família tinha o braço esquerdo levantado para o ar, o que fez dizer a muitos que pedia aos céus vingança!
Os acusados foram declarados culpados das mortes da Família Picanço e foram condenados à pena de morte por fuzilamento, por serem militares. No entanto, a pena foi comutada para José do Nascimento e José Cotovio. Apenas José Vicente, o cabecilha, foi executado no Carrascal, junto da Igreja da Lapa, em Agosto de 1839. Foi sepultado no cemitério de São José, onde jazia a família Picanço.
Os outros dois bandidos foram condenados ao degredo para os presídios em África. Contudo, não sobreviveram muito tempo ao chefe. Um morreu assassinado numa prisão em Lisboa, antes de embarcar e o outro, pouco depois de chegar a África, morreu com febres…
Esta história sinistra ainda hoje perdura na memória dos Calipolenses. Já no final do século XIX era contada pelo Padre Espanca, que ainda não era nascido quando ocorreram os factos. Os seus pais relataram-na vezes sem conta, segundo afirmou. Ainda conheceu Cipriano José Picanço, irmão do infeliz João Baptista. Os sobrinhos José da Conceição e José Joaquim, que figuram na tragédia, morreram ainda moços.
Foram eles que mandaram colocar a placa indicativa, no sítio que é hoje conhecido como  Cruzes dos Picanços, ou as Quatro Cruzes.