terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O MIGAS FRIAS – A história de um atentado real, em Vila Viçosa

Em Vila Viçosa, este nome acaba por soar familiar e de certeza que muitos desconhecem o verdadeiro motivo para que tal aconteça. É comum ouvir-se a seguinte expressão: “És bruto como o Migas Frias”, ou “És bruto para as Migas Frias”, quando se fazem referências a alguém que é quezilento ou brigão.

Não se sabe ao certo quais foram as motivações para este episódio. Acto isolado? Conspiração? Loucura?

A história começa assim:

No ano de 1769, deu-se a segunda visita do Rei D. José I a Vila Viçosa, acompanhado por toda a Família Real, Secretários de Estado e outros membros da Corte. Terá chegado logo no início de Setembro e tencionava ficar no Paço Ducal durante alguns meses.
No dia 3 de Dezembro, pelas onze e meia da manhã, o Rei seguiu com a Rainha Mariana Vitória, com o Infante D. Pedro e muitos outros fidalgos para a Tapada Real, desde o Paço, para cumprirem mais uma jornada de caça. O Rei montava um cavalo branco chamado “Cordovês”.

Quando a comitiva real se aproximou da Porta dos Nós (a porta da vila, hoje colocada na cerca do Convento dos Agostinhos e que estava no eixo da via que faz a ligação a Borba), já ali estava do lado esquerdo da parte de fora um forasteiro natural do Fundão, que fora soldado de artilharia em Elvas, chamado João de Sousa, que tinha por alcunha o “MIGAS FRIAS”. O rei D. José não o avistou, senão depois de passar pela dita porta. Reparando na atitude hostil de João de Sousa, com uma moca levantada para o atingir, o Rei virou o cavalo sobre a mão direita, fazendo-o levantar sobre o agressor, conseguindo assim escapar a uma forte pancada na cabeça e sendo somente atingido na mão e nos dedos.

Porém, o veterano soldado não tremeu com a atitude corajosa do rei e lançou-lhe uma segunda bordoada que atingiu o pescoço do cavalo. No meio da confusão e do alarido, a comitiva real procurou acercar-se do agressor, mas este, com obstinada fúria, acabou por maltratar muitos deles.
O Conde do Prado, D. Lourenço José de Brotas de Lancastre e Noronha, terá sido um dos que provaram a dureza dos golpes do bordão de João de Sousa.
Gritava o Rei para os fidalgos, no meio da refrega:

- Não o matem! Não o matem! É um louco!

O Padre Espanca, que fez a descrição deste episódio, salientou que esta decisão do monarca foi a mais prudente, pois se o “Migas Frias” fosse morto no local, perdia-se o fio que poderia guiar os juízes até uma eventual grande conspiração contra o Rei, como consequência do grande reboliço que lavrava por todo o país devido às medidas pouco populares do Secretário de Estado do Reino (Primeiro-Ministro), Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês do Pombal.
Muito a custo, lá conseguiram os nobres atropelar com os cavalos o temerário “Migas Frias”. Foi posteriormente agarrado pelo “chicote” da longa cabeleira que tinha, segundo a moda em vigor. Logo outro lhe alcançou um braço e outros dois, as pernas.
Assim, a cavalo e em “procissão”, lá foram os nobres entregar o “Migas Frias” à guarnição do Castelo, onde os soldados da guarda, à porta da Fortaleza Artilheira, o recolheram numa casinha à mão direita do vestíbulo, que no século XIX ainda era conhecida como a “Casinha do Conde do Pau”.

Depois, tornaram os fidalgos para a Tapada, onde o Rei continuava a caçar, numa jornada que durou até à noite, conforme era costume por aqueles dias…

O “Migas Frias” acabou por dado como louco e foi condenado a prisão perpétua. Foi de Vila Viçosa para Lisboa, onde por muitos anos esteve na prisão do Pátio dos Bichos, sendo posteriormente transferido para a Torre de São Julião. Ainda assim, teve a sorte de não ser morto, esquartejado, queimado e lançadas as suas cinzas ao mar, conforme o Marquês do Pombal costumava fazer com os réus de crimes semelhantes…
Não são conhecidas as verdadeiras causas para esta agressão do “Migas Frias” ao Rei. Houve quem dissesse que a atitude que fora tomada como indignação do povo português à soberba e ao despotismo do Marquês do Pombal e ao aumento dos impostos.
Segundo o seu depoimento, o “Migas Frias” queria apenas uma mercê pelos serviços prestados à Coroa e foi por esse motivo que se deslocou a Vila Viçosa, no sentido de interpelar pessoalmente o Rei, algo que não tinha conseguido até então.

O que parece claro é que a atitude criminosa do “Migas Frias” não foi a consequência de uma conspiração contra D. José e nem sequer se terá tratado de uma tentativa de regicídio, segundo o Padre Espanca. Alguns autores, como Manuel Pinheiro Chagas, destacam a possibilidade de se ter tratado de uma intriga contra o Infante D. Pedro, irmão e genro de D. José (futuro D. Pedro III, marido da Rainha D. Maria I).
Em Vila Viçosa, este episódio foi recordado por muito tempo e ainda hoje se mantêm na tradição oral. Zombava-se do crime do “Migas Frias”, afirmando-se que o Rei D. José o havia condecorado com o título de CONDE DO PAU!


FONTES CONSULTADAS:

ESPANCA, Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa, 36 cads., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.

Idem, Compêndio de notícias de Villa Viçosa: província do Alentejo, Typ. De Francisco de Paula Oliveira Carvalho, Redondo, 1892 (HG 13830 V.)



                                                                   O Rei D. José I





                                                        Porta dos Nós ou Porta da Vila

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