É
recorrente falar sobre a importância de Vila Viçosa no século XVI. As opiniões
dos especialistas convergem em classificar a localidade como um eixo de
considerável importância a nível das artes, das ciências e das letras. Os
factos históricos apontam para excecional concentração de personalidades e de
saberes que irradiavam à luz da corte brigantina.
O
interesse dos Duques de Bragança, logo no final do século XV, pelas correntes
humanistas e pelos estudos literários e científicos teve em Vila Viçosa o seu
foco principal de desenvolvimento. O mecenatismo dos sucessivos duques foi uma
constante que originou a confluência de mestres, cientistas, filósofos,
humanistas, escritores, sábios e poetas para esta terra no coração do Alentejo.
Hoje, à
distância, pode parecer quase inconcebível que, num período em que as
comunicações tinham um tempo que não é o do século XXI, Vila Viçosa assumisse
de facto tal protagonismo no contexto europeu.
Para
contextualizar de melhor forma a evolução das correntes humanistas no Paço
Ducal de Vila Viçosa, é necessário recuar até ao ano de 1483, quando ocorre a
execução do terceiro Duque de Bragança, D. Fernando II, por ordem expressa do
rei D. João II. Este facto ocorre no âmbito de uma política de centralização do
poder régio e a Casa de Bragança surgia, claramente, como uma ameaça à Coroa. O
desmembramento da casa ducal brigantina foi uma realidade, que levou o poderoso
ducado quase à extinção…
O filho
primogénito de D. Fernando, D, Jaime, então com quatro anos de idade, é
conduzido para Espanha, juntamente com o seu irmão D. Dinis. Levados pelo tio,
D. Álvaro de Bragança, (irmão mais novo de D. Fernando II), são acolhidos pelos
Reis Católicos, Isabel e Fernando.
É precisamente
na corte espanhola que D. Jaime vai receber a sua primeira formação literária.
Teve, no estrangeiro, o privilégio de figurar, juntamente com outros jovens da
alta aristocracia espanhola, entre os primeiros discípulos do humanista
italiano Pedro Mártir de Anghiera, nas aulas de retórica.
Os
primeiros anos da formação de D. Jaime terão uma influência determinante no seu
carácter e na forma como tentou implementar princípios e normas do Renascimento
italiano em Vila Viçosa. O gosto pelo humanismo criara raízes na Casa de
Bragança, a partir de então.
No seu
regresso a Portugal, D. Dinis (irmão mais novo de D. Jaime), receberá, em
Lisboa, no Paço de D. Jaime, lições de outro humanista italiano, Cataldo
Parísio, que em 1486 trocara a Universidade de Bolonha pela corte do rei de
Portugal.
O ensino
deste mestre não se restringiu a D. Dinis, já que foi ele também o responsável
pela educação dos filhos do quarto Duque de Bragança, D, Jaime. De facto, D.
Jaime (com o mesmo nome do progenitor), D. Fulgêncio e D. Teotónio de Bragança
(futuro Arcebispo de Évora) recebem a primeira formação com base nas novas
metodologias de ensino, nos estudos feitos previamente em Vila Viçosa.
Seguem
então para Coimbra, cuja Universidade estava, em meados do século XVI, em pleno
florescimento e expansão. D. João III chamara à Academia coimbrã muitos dos
numerosos bolseiros que inteligentemente mantinha em Paris, juntamente com
outros alunos formados em Salamanca e Lovaina.
O Rei
“Piedoso” recrutara e chamara a Coimbra alguns dos melhores mestres e
professores espanhóis, franceses, italianos e espanhóis, que credibilizaram
ainda mais o ensino universitário da cidade à beira do Mondego.
No que
concerne especificamente a Vila Viçosa e depois do regresso de D. Jaime em
1496, era tempo de reerguer a Casa de Bragança. O Duque recuperou todos os seus
direitos, passou a ter o privilégio de conferir graus de nobreza, foi ordenado
herdeiro presuntivo do trono por D. Manuel e a Casa de Bragança renascia,
assumindo-se como a mais importante casa do reino, depois da casa real.
O Paço
Ducal de Vila Viçosa é a sede de uma verdadeira corte, o que explica também, em
certo sentido, a expansão urbana quinhentista da localidade. Este facto atraiu
muitas famílias importantes do Reino, que integravam o núcleo mais próximo da
Casa de Bragança.
Vila Viçosa
não foi, durante este período e pelo menos até 1640, um lugar perdido na vasta
planície alentejana. Era, sem dúvida, um centro ativo, onde acudiam, com
frequência, os correios reais e os do embaixador de Carlos V ou da mais alta
nobreza espanhola, com as novas sobre os últimos acontecimentos políticos,
sociais ou diplomáticos.
Os Duques,
nomeadamente D. Jaime e D. Teodósio I, mantiveram em diversas cidades da Europa
os seus agentes, sobretudo em Espanha e em Itália, que lhes enviavam
regularmente os seus relatórios. Estes “espiões” permitiam o acesso da casa
ducal a informações privilegiadas, obtidas com base em operações de grande
secretismo.
Para além
da reabilitação económica, social e política, o quarto Duque tinha também como
prioridade a organização de estudos regulares no recém-criado Paço Ducal (cuja
construção se inicia em 1501), não só para a sua descendência, mas também para
os moços fidalgos da corte.
Até
então, a formação dos Duques e dos seus irmãos tinha sido feita fora do
contexto calipolense: em Espanha, por motivo do exílio, em França e na Bélgica,
com o recomeço em Lisboa, antes de Vila Viçosa.
É hoje
quase um dado adquirido que as disciplinas de trivium (lógica, gramática,
retórica) foram ministradas dentro das paredes do Paço Ducal de Vila Viçosa,
logo no início do século XVI. Em relação aos conteúdos do quadrivium
(aritmética, música, geometria e astronomia), só terão sido aplicados mais
tarde, em meados de 1530.
O que
parece indubitável é que na primeira metade do século XVI, os Duques de
Bragança chamaram a si alguns dos mais importantes professores portugueses e
estrangeiros.
Um dos
mais notáveis foi sem dúvida Diogo de Sigeu. Nascido em França mas vivendo em
Toledo no início de 1522, Diogo de Sigeu entra em Portugal no séquito de Maria
Pacheco (nobre castelhana, esposa do general Juan de Padilla), aquando do seu
exílio no nosso país.
Em 1530,
é admitido ao serviço da Casa de Bragança, onde irá permanecer durante 20 anos.
Foi este mestre, formado pela Universidade de Alcalá de Henares, quem preparou
em Vila Viçosa, a D. Jaime (filho), D. Fulgêncio e D. Teotónio antes dos
estudos na Universidade de Coimbra, do mesmo modo que completou a formação
literária de D. Teodósio, iniciada na corte de D. Manuel I com Cataldo Parísio.
Sigeu deixava
Vila Viçosa vinte anos mais tarde para ingressar na corte de D. João III, como
preceptor dos jovens fidalgos. Foi substituído por outro estrangeiro, o
sevilhano Juan Fernandez, antigo professor em Alcalá de Henares e Salamanca, no
Colégio de Santa Cruz de Coimbra e catedrático de Latim na Universidade da
mesma cidade.
Permaneceu
em Vila Viçosa durante cerca de trinta anos. O ensino das Humanidades no Paço
do Reguengo não terá sofrido interrupções ao longo de todo o século XVI e foram
diversos os mestres que aqui lecionaram, nomeadamente Fernão Cardoso, Fernão
Soares, Gaspar Colaço e António de Castro.
Paralelamente
ao ensino das disciplinas clássicas, ocorreu também neste período em Vila Viçosa
o ensino das matérias científicas do quadrivium. António Maldonado Ontiveros
dirigiu uma escola de astronomia no Paço. Chegado a Portugal em 1526, o médico
e astrólogo espanhol iria fixar-se para sempre em Vila Viçosa, por mais de
quarenta anos, prestando serviço não somente aos Duques, mas também a D. João
III.
Numa
corte constituída por mais de 350 pessoas, sobressaíram nomes como os de Martim
Afonso de Sousa (que lançaria as bases da colonização do Brasil), Diogo Mendes
de Vasconcelos, Gonçalo Pinheiro (futuro Bispo de Viseu) e Manuel da Costa
(professor das Universidades de Coimbra e de Salamanca, cuja ascendência era
originária precisamente de Vila Viçosa).
Aqui
estavam estabelecidos médicos e juristas ao serviço do Paço, os mestres que
tinham sob sua responsabilidade a formação dos Duques e dos jovens nobres da
Casa de Bragança e os homens das letras protegidos pelo círculo brigantino:
Jerónimo Corte –Real, António de Sousa de Abreu, o poeta Pedro de Andrade
Caminha, Fernão Cardoso, ou ainda, Afonso Vaz de Caminha, um dos fidalgos mais
eruditos do seu tempo.
Em Vila
Viçosa estava em 1571 a jovem Públia Hortênsia de Castro, então com 22 anos,
famosa em letras, que não foi esquecida na relação da viagem do Cardeal
Alexandrino.
Para além
disso, verificava-se também uma intensa e dinâmica atividade científica. Os
estudos de cosmografia foram tema predileto dos Duques. Aqui existiu, sem
dúvida, um observatório astronómico e António Rodrigues, grande mestre da conceção
de instrumentos astronómicos e de navegação, tinha oficina na terra. O próprio
D. Jaime era entendido em artes náuticas e D. Teodósio dedicado de forma
peculiar às questões de cosmografia e astronomia.
O que
parece claro é que o Paço Ducal de Vila Viçosa viveu o Renascimento e o gosto
pelo Humanismo em múltiplas vertentes. Essa marca ainda hoje é visível. Os
Duques, amantes da música, foram os impulsionadores da Capela e D. Teodósio I,
dado às artes e antiguidades, enriquecia o Paço com pinturas, esculturas,
tapeçarias e mobiliário, provenientes de todas as partes do Mundo.
Mandava também recolher em Vila Viçosa
monumentos epigráficos, alguns deles provenientes do santuário pré-românico do
Endovélico, em São Miguel da Mota (Alandroal). A morte surpreendeu-o quando
estava a lançar as bases para a Universidade que quis ver instalada no Convento
de Santo Agostinho, mesmo em frente do Paço Ducal. A livraria que constituiu
era uma das mais importantes do espaço europeu, quer em quantidade, quer em
qualidade.
É de
lamentar, de certo modo, que esta dinâmica cultural tenha vindo a perder fulgor
ao longo dos séculos. É certo que a História não é estática e o passar do tempo
trouxe consigo muitas mudanças que eram inevitáveis. Hoje, vivemos um pouco na
sombra do passado.
Permanece
essa memória, que temos a obrigação de preservar. Talvez para os presentes seja
difícil entender que no século XVI Vila Viçosa tivesse um considerável
protagonismo a vários níveis, até como linha avançada da inovação e da ciência
e como exemplo erudito do pensamento humanista em pleno Alentejo.
BIBLIOGRAFIA
CONSULTADA
MATOS,
Luís de, A Corte Literária dos Duques de Bragança no Renascimento, Fundação da
Casa de Bragança, 1956.
Finalmente! A divulgação da história e do significado dos monumentos da Vila sobe de nível. Parabéns ao autor. Só um esclarecimento. O Terreiro do Paço é um espaço magnífico. Mas esta ala do palácio , hoje a mais visível e emblemática, só foi concluída no sec. XVII, quando o Renascimento já tinha pasado a Contrareforma (Pode ve-se em Memórias de Vila Viçosa , de Padre J J Espanca, uma referência à data em que foi colocado o revestimento em mármore desta fachada 1639 -- mas escrevo com base na memória) Uma imagem com o Convento das Chagas , ou da igreja dos Agostinhos, evocaria melhor a época renascimental. O palácio de D. Jaime (que estria à esquerda do que se vê) tem sido posto em evidência em estudos arquitectónicos a partir de medições com laser. A sua entrada seria pela Porta dos Nós. Mas, infelzmente, a grande obra iniciada por D Jaime e hoje ignorada, deprezada e escondida, é a fortaleza artilheira.
ResponderEliminarQuando os calipolenses se guindarem ao nível desta publicação, voltará a haver esperança. Abaixo a ignorância cultivada!
#VilaViçosaNãoseRende.#VilaViçosa #Monumentosnacionais #Património #MemóriaSocial #DJaime
Caro amigo! Muito obrigado! Existem muitas dúvidas relativamente às fases de construção do Paço. Parece claro e objectivo para alguns especialistas que a 2ª fase de construção do ducado de D. Teodósio I (depois dos dois ciclos construtivos do seu antecessor, D. Jaime), incluiria já, até ao Convento das Chagas, o piso térreo e o andar nobre. Portanto, entre 1537 e 1563, os dois primeiros pisos estariam já concluídos, com a nítida influência renascentista na fachada de mármore. Há alguns especialistas que defendem que terá sido Nicolau de Frias, já no final do século XVI, durante o ducado de D. Teodósio II, o mentor do 3º piso. Mas as dúvidas subsistem Esperemos que em breve haja mais novidades sobre este tema!
ResponderEliminarO nível continua a subir. Mais um andar. Mas as Memórias do Padre Espanca (Se bem me lembro, ele cita o Cadornega), temos que as rever. Quanto à diferença entre o espírito do Renascimento e o da Contrareforma ela pode ser importante para compreender a história de Vila Viçosa, no que diz respeito aos edifícios, mas também relativamente aos costumes e ao modo como ficaram na memória social. Tive notícia de uma conferência sobre Dona Leonor e D. Jaime, mas infelizmente não tenho podido ir a V V. Seria possível aceder ao texto dessa conferência. Como é que pensa dinamizar este blog. (Afinal faltava um blog ... Será que dava para envolver a leitura deste blog com música de Públia ou do Cancioneiro de Vila Viçosa.
ResponderEliminarO Tiago, com esta publicação, deu-me tal alento que até vou a V V este fim de semana. Daria para o tal jantar, ou almoço?)
O nível continua a subir. Tiago Passão Salgueiro, passando por cima de alguma pedanteriia que se poderia ver no termo esclarecimento, respondeu: "Parece claro e objectivo para alguns especialistas que a 2ª fase de construção do ducado de D. Teodósio I (depois dos dois ciclos construtivos do seu antecessor, D. Jaime), incluiria já, até ao Convento das Chagas, o piso térreo e o andar nobre. Portanto, entre 1537 e 1563, os dois primeiros pisos estariam já concluídos [....]
ResponderEliminarNão tenho, nessa matéria, mais dados do que os que li em "Memórias ..." de JJ Espanca e a observção atenta mas não triinada, nem informada, de desenhos e plantas da época. Tomo por boa esta conclusão. Já ém relação ao que TPS escereve de seguida, mantenho as minhas dúvidas e objecções. Tiago termina a frase escrevendo: " com a nítida influência renascentista na fachada de mármore. Sobre o que possa ser considerado renascimento em Portufgal e em V V há toda uma discussão a fazer. Para mim, aquela fachada em mármore é maneirista ...(Mas para o sec XVI em Itália, já se fala em maneirismo.) Se J J Espanca tem razão ao pensar que a colocação do marmore terminou em 1639, faria todo o sentido que o estilo maneirista (renascimental para alguns) das três ordens clássicas desde o dórico do 1º piso, ao Jónico do 2º e ao coríntico do terceiro, ser o resultado de uma concepção unitária. Este estilo maneirista unitário, caracterizado pela sucessão das três ordens, não podia estar presente nas fases de construção em que só havia dois andares. A considerar?