Vila Viçosa, 1512
A triste história que vou contar manchou de
sangue as paredes do nobre solar da Casa de Bragança…
O quarto Duque, D. Jaime, regressado de
Espanha uns anos antes, vivia contente e satisfeito com a sua esposa, Leonor de
Mendonça, fidalga da linhagem dos Medina Sidónia e os seus filhos, quando o
espírito do mal e a fatalidade ruim da natureza humana quiseram amargurar-lhe
os dias com um desgosto profundo…
E o drama começou assim:
António Alcoforado, filho de Afonso Pires
Alcoforado, fidalgo de D. Jaime e do seu pai, D. Fernando II, foi admitido nos
aposentos da Duquesa D. Leonor, para servir de pajem ao seu filho, D. Teodósio.
Era ainda jovem, na casa dos dezasseis anos
e era considerado muito petulante e maldoso, devido ao seu comportamento
desviante e palavreado pouco digno, utilizado em todas as circunstâncias. A
Duquesa, por seu lado, era bastante leviana, gastando o tempo a brincar com os
rapazes que lhe entravam nos aposentos, rindo com eles, sempre com gracejos
secretos e alguma ingenuidade. Tinha predilecção pelo Alcoforado, por ser ele o
pajem do seu filho Teodósio.
Com o tempo e a convivência, cresceu a petulância
do Alcoforado, devido à relação de intimidade que mantinha com a jovem Duquesa,
com longos passeios pelas varandas e jardins do Paço.
Os nobres da Casa de Bragança começaram a
ficar incomodados com as confianças dadas pela Duquesa ao rapazola. E esta
ficava com o semblante carregado cada vez que era admoestada por esse facto… D.
João de Eça e a mulher, D. Maria de Melo avisaram o vedor Fernão Velho sobre a
situação, que estava a ser indecorosa e imoral:
- Vossa Mercê deve avisar a Duquesa! A
intimidade com o Alcoforado é escandalosa!
O pobre vedor tentava chamar D. Leonor à
razão, mas esta não lhe dava ouvidos… E aos olhos de todos, a confiança dada
pela Duquesa ao jovem fidalgo era comentada, em murmúrio, pelos corredores do
Paço…
Um dia, uma das moças da vila tinha vindo
trazer fruta à câmara da Duquesa e, enquanto esperava à porta do Paço, pôs-se o
Alcoforado a derriçar com ela, dizendo-lhe piadas. Esta porém, repreendeu-o,
dizendo-lhe que era ainda um menino e que não devia dizer aquelas patacoadas.
Este, despeitado, retorquiu com orgulho:
-Menino, eu? Eu sou homem e mais que homem!
Fernão Velho, escondido atrás da porta da
antecâmara, aproveitou o ensejo para chamar novamente a Duquesa à razão,
contando-lhe o sucedido para ver se ela desistia das suas ideias amorosas tão
mal disfarçadas. Porém, vendo que ela recebia tão mal as suas advertências,
entendeu que era indispensável despedir o petulante moço do serviço que lhe
fora cometido e fechar-lhe assim o acesso ao quarto da Duquesa.
Passou-se isto no início de Setembro,
quando o Duque D. Jaime e tinha deslocado à corte do Rei D. Manuel I em Lisboa.
Assim que este regressou, foi despedido o Alcoforado, a pretexto de ser já
muito grande. Ele devia ter 16 anos e a Duquesa, 23.
Porém, o incêndio fatal do amor libidinoso
já se tinha ateado há muito e não havia quem o apagasse. D. Leonor amava o
pajem como nunca amara o seu legítimo esposo…Poucos dias antes do seu
afastamento, cortou-lhe ela, por gracejo, uma madeixa de cabelos, que queria
guardar como relíquia, tecendo depois um cordão que trazia consigo,
misturando-lhe seda e fio de ouro e de prata, tal era a ardência do seu afecto
para com o pajem do seu filho.
Porém, dada a ordem do Duque, seria fim de
Setembro quando Alcoforado perdeu o emprego… O seu amor por Leonor, que já era
profundo, passou com a separação a tornar-se fogoso, delirante, cego…
Ao fim de poucos dias, já António
Alcoforado escrevia uma carta de amores saudosos à sua antiga ama, pondo-lhe no
sobrescrito:
À Senhora Duquesa, Minha Senhora
As cartas começavam invariavelmente pelo
seguinte título:
Minha Senhora da minha vida!
As primeiras cartas não levavam assinatura.
Mas as posteriores, até ao número de dez ou doze, tinham sempre no fim a sua
rubrica:
O vosso leal menino, António Alcoforado
Estas cartas, às quais D. Leonor sempre
dava resposta, eram trazidas e levadas por Roseimo, um rapaz escravo, que era
bastante esperto e velhaco. Este, por sua vez, entregava-as a Ana Camela, uma
aia da Casa da Duquesa, que não era mais do que uma alcoviteira.
Muitas vezes, era ela a receber as cartas
pela mão do Alcoforado, nas traseiras da Horta do Reguengo. E além das cartas,
eram frequentes os recados, sempre enviados por Roseimo, que se deslocava até à
Rua da Freira[1],
onde Alcoforado morava com a sua mãe.
O fim das cartas e dos recados, além de
conservar o fogo do amor, era abrir caminho para que se juntassem os dois
amantes. Cego pelo desejo, Alcoforado engendrou um plano: entrar pela janela da
câmara da Duquesa, com alguma ajuda que ela lhe desse lá de cima.
D. Leonor, ao princípio, respondeu que não.
Mas depois, vencida pelo sentimento, lá lhe respondeu que ele podia fazer o que
quisesse. Pediu-lhe para ele ter atenção a essa vontade e que se ousasse
entrar, teria que ser durante a madrugada.
Com o beneplácito da Duquesa, Alcoforado
mandou o recado pelo escravo, a dar conta de que essa mesma noite iria ao
encontro de Leonor. Feliz, mas receosa com a ideia da vinda do seu amado, a
Duquesa arranjou logo um pretexto para se deitar muito tarde e manter aberta a
janela da sua câmara: disse à camareira Beatriz Eanes e à moça Ana Fernandes,
as quais dormiam detrás das cortinas de alcatifa da sua cama, que fizera uma
promessa de rezar à meia noite com a janela aberta.
As duas encostavam-se vestidas nas suas camas
e só se despiam depois da Duquesa terminar as rezas. Ana Camela, a sua
principal confidente, dormia numa outra câmara perto.
A câmara da Duquesa ficava voltada para o
Jardim do Bosque, com uma janela de sacada. Por detrás da janela, ficava o
guarda-roupa e logo depois, a câmara dos filhos dos Duques, onde estavam duas
amas: uma tratava de D. Teodósio, o mais velho e herdeiro e D. Isabel, que
teria pouco mais de um ano. Com elas, encontrava-se a escrava negra Francisca
da Silva, também ela ama das crianças, responsável pelas fraldas.
Com o pretexto das rezas, esteve a Duquesa
sem recolher à cama até às três horas da madrugada. E o Alcoforado lá entrou,
clandestino, pela calada da noite…
No outro dia, queixou-se Beatriz Eanes a
Ana Camela, porque a Duquesa se tinha demorado muito com as orações naquela
noite…
Entusiasmado, Alcoforado queria novo
encontro, o mais rapidamente possível. A Duquesa, amedrontada, respondia-lhe
que não, pois não conseguia comer, nem cear, com a ansiedade. Para além disso,
tinha um arranhão numa perna, como Alcoforado bem sabia. Mas se ele teimasse,
que viesse…
A assim, o destemido pajem entrou três
vezes pela janela da Duquesa, antes da quarta e última, que não foi nenhuma…
As entradas furtivas estavam a começar a
levantar muitas suspeitas e havia já muitas desconfianças. Mais cedo ou mais
tarde, os boatos iam chegar aos ouvidos do Duque.
Esta possibilidade fez tremer Ana Camela
que, no dia seguinte, foi tomar conselhos com a escrava Francisca da Silva, que
era mulher prudente e virtuosa. Contou-lhe as relações de Alcoforado com Leonor
e mostrou-lhe algumas cartas que estavam guardadas num cofre da câmara da
Duquesa e que Francisca leu, porque sabia ler, ao passo que Ana Camela não.
Lidas as cartas, estremeceu a escrava com a lembrança das desgraças que estavam
iminentes. Ficou decidido que Ana Camela teria que contar ao vedor Fernão Velho
o que se estava a passar, para que este lhe desse remédio: ou se matavam o
Alcoforado e o Roseimo, ou se participava o caso ao Duque. E assim se cumpriu.
Francisca da Silva foi quem primeiro se
chegou à fala com o vedor. Este, incrédulo com a horrorosa novidade, pediu para
ver as cartas, sem dar a entender que as mostraria a D. Jaime. Ana Camela tirou
duas do cofre, para que Fernão as pudesse ler. Quis este ler mais três ou
quatro, o que fez apressadamente, de modo a que fossem restituídas ao cofre,
não fosse a Duquesa pedi-lo à sua aia.
Leonor já tinha queimado alguns desses
manuscritos e na véspera da catástrofe, queimou-as todas, ficando apenas delas
as assinaturas de Alcoforado, como relíquias.
A comunicação das cartas por Francisca da
Silva e Ana Camela a Fernão Velho foi feita no dia 21 de Outubro, durante a
tarde: no serão do mesmo dia, este participou o caso ao Duque e deu-lhe a ler duas
cartas, uma dele e outra dela. D. Jaime, ferido no seu orgulho, recolheu à sua
câmara a título de doente e não mais saiu dos seus aposentos. No dia seguinte,
chamou a conselho seu o velho camareiro-mor Fernão Rodrigues Pereira e
contou-lhe o caso. O segredo fico guardado entre os três.
E os dias iam passando, vagarosamente, por
entre boatos e visitas…
Ana Camela facultou mais algumas cartas e,
como se falava das entradas de Alcoforado que já tinham sido feitas, chamou o
Duque o seu guarda-roupa Pêro Vaz e encarregou-o de vigiar durante a noite a
janela da Duquesa, juntamente com o hortelão do Reguengo Pêro Fernandes.
Seguindo as ordens do Duque, puderam-se ambos debaixo de uns loureiros e murtas
que estavam em frente da mesma. Tudo foi feito em segredo, sem que D. Jaime
revelasse mais sobre a situação.
As vigias começaram no final de Outubro e
no domingo, dia 2 de Novembro, viram a janela abrir a desoras e dizer: esta é a
hora certa!
Esse fatídico serão passou-o D. Leonor a
jogar às cartas com Beatriz até que, sendo perto da meia-noite, a mandou
recolher enquanto rezava, pedindo-lhe o cofre onde guardava as suas relíquias.
Queimou as cartas que lá tinha, deixando ficar somente as assinaturas que
aparou à tesoura. Como tinha intenção de se deitar tarde, apesar de ter ceado
às nove da noite, comeu amêndoas e outras iguarias que pediu à sua camareira.
Alcoforado, depois da meia noite, pôs-se a
caminho do Paço, com a espada do seu irmão Manuel Alcoforado e levando como
pajem o criado João Fernandes. Este ficou de sentinela junto da Fonte Pequena,
pedindo-lhe o pajem para ele aguardar ali pelo seu regresso. Se a demora fosse
muita ou se tivesse frio, podia recolher a casa. Chegado o Alcoforado junto da
janela da câmara da Duquesa, esta sentiu-lhe os passos, abrindo a janela e
falando com ele. Seguidamente, no sopé das varandas que torneavam os aposentos,
lá encontrou uns cabanejos que serviam nas obras que o Duque D. Jaime ali
fazia. O novo Paço do Reguengo estava ainda em construção.
Assim, saltou para o muro que estava a ser
construído na direção da janela e colocou dois grandes cestos de verga um em
cima do outro, de modo a que pudesse subir por eles e agarrar-se a uma corda
que D. Leonor lhe lançara da varanda. Com esforço, lá o puxou ela, galgando o Alcoforado
finalmente o peitoril da janela, conseguindo entrar na câmara.
Mal sabia ele que, debaixo do loureiro,
donde colhera o ramo de cima do muro novo, o estavam espreitando o moço do
guarda-roupa e o hortelão do Reguengo!
Minutos depois levantavam-se os vigias: o
hortelão ia participar o ocorrido ao Duque e Pêro Vaz colocou-se debaixo da
janela. Voltou o hortelão com a ordem terminante de D. Jaime para que ninguém
saísse pela janela e Pêro Vaz subiu para o muro, mesmo debaixo da janela, para
impedir qualquer saída.
O Alcoforado ficou em silêncio na câmara
durante cinco minutos, até que D. Leonor, ouvindo passos no jardim, vem à
janela e pergunta, turvada:
- Quem esta aí?
- Sou o Vaz – respondeu o Pêro – Esse
homem que está aí dentro que não saia nem se bula, senão matá-lo-ei com esta faca!
Ele que aguarde a vinda do Duque e ponha-se nas suas mãos!
Nisto chega à janela o antigo pajem,
pedindo a Vaz que o deixe sair. O breu da noite não deixava ver nada com
nitidez. Este, perguntando-lhe quem era,
repete a ameaça já feita, dizendo:
- Em má hora cá vieste! Ponde-vos nas
mãos do Duque!
- Então ele não me matará?
- Não! – tornou o moço do guarda-roupa – mandar-vos-à dar cinco ou
seis dúzias de açoites e contentar-se-à com esse castigo.
Mas isto dizia o Vaz para o fazer desistir
da fuga pela janela.
Com o alvoroço, levantara-se a camareira
Beatriz e a criada Ana Ferreira, que se tinham encostado à espera que D. Leonor
acabasse com as supostas rezas, como das outras vezes. D. Leonor, aflita, corre
com as criadas para o guarda-roupa e ali pergunta à camareira se esta não
poderia mandar o Alcoforado sair por uma janela.
- Está tudo fechado, Senhora! –
respondeu-lhe Beatriz, aflita – Por isso, não sei o que possa fazer!
Já então começava em baixo grande alarido,
batendo o porteiro João Gomes à porta da escada, pedindo à pressa água rosada
para sua Senhoria o Duque D. Jaime. E
então, D. Leonor afastou-se do seu amante, correndo para a porta da câmara dos
seus filhos, que estava cerrada com uma pedra, gritando desesperada:
- Abri-me lá! Abri-me lá!
Empurrou com tanta força que a porta se
abriu antes que as amas dos meninos o fizessem. Conforme entrou, deixou-se cair
sobre a cama da menina D. Isabel, dizendo angustiada:
-Sou morta! Sou morta!
- Senhora, o que é isso? –
perguntaram as amas, admiradas.
- Acharam um homem na minha câmara! Rezai por mim que hoje
vou ser degolada!
Voltemos atrás. Pedro Fernandes, o
hortelão, deixando o esconderijo dos loureiros, fora bater à porta dos
aposentos do Duque a dar-lhe a notícia de que tinha entrado um homem pela
janela da Duquesa.
Então D. Jaime ordenou-lhe que tornasse com
mais alguns criados para impedir a saída do intruso. Chamou o seu camareiro
Fernão Rodrigues Pereira e mandou-lhe fazer levantar o escrivão e tabelião
geral Jorge Lourenço, que dormia no guarda-roupa, juntamente com Gaspar Vaz.
Todos tomaram as espadas e rodelas com
tanta pressa, que o Duque se levantou em roupas brancas e os demais tomaram
somente capas em cima das vestes interiores.
Chegados à porta dos aposentos da Duquesa,
tocou D. Jaime na porta, de leve, dizendo ao porteiro João Gomes que lha
abrisse, como aconteceu. Acrescentou depois que lá estava em cima um homem e
que portanto pegasse nas espada e na rodela. Mandou de seguida que o tabelião
geral levasse adiante uma tocha e que o porteiro batesse pedindo água rosada.
E como as mulheres não acudiam ao rebate,
já repetido rijamente, o Duque pegou numa tranca e já tinha a porta quase
arrombada quando Beatriz Eanes veio por fim abri-la.
Subiram as escadas, indo o tabelião adiante
com a tocha e, lá em cima, bradava D. Jaime:
- Quem entrou aqui? Quem entrou aqui?
E nisto passou pela câmara sem ver o
Alcoforado que tremendo, se encobrira com as cortinas do leito da Duquesa.
Talvez tivesse sido este o momento certo para que ele pudesse escapar pela escada!
Passa o Duque enfurecido para o
guarda-roupa e entra no quarto dos meninos, com a sua voz grossa e a repetida
interrogação:
- Quem entrou aqui? Que estais fazendo
ai, Senhora, ainda vestida? – tornou-lhe o Duque
– Esta é a minha
doença, que há dez dias que não durmo!
- Estou aqui e sempre tenho estado!
– respondeu Leonor.
O Duque não se deteve ali. Com a ponta da
espada, levantou a entre-cama para ver se lá estava escondido o moço fidalgo e,
como se não o achasse, passou ao guarda-roupa, deixando como sentinela da parte
de fora o porteiro João Gomes, com ordem para não deixar sair a Duquesa e por
cuja razão ele a fechou, cerrando o ferrolho. Daí passou o Duque para os
aposentos de Ana Camela e pediu-lhe o cofre da Duquesa. Ela disse-lhe que
estava o dito no guarda-roupa. Por não lhe darem a chave, D. Jaime arrombou-o e
tirou dele algumas cartas que lá estavam.
Tornou à câmara e voltou a não ver
Alcoforado, que se encobria com as cortinas do leito. Desceu então as escadas e
revistou o piso térreo, onde somente estavam as escravas. Concluiu então que o
pajem só poderia estar na câmara, onde finalmente o encontraram. E o Duque
disse:
- Ei-lo aqui!
O Alcoforado pôs-se de joelhos, implorando
perdão pela traição que lhe tinha feito e que tivesse misericórdia para com
ele. O Duque respondeu:
- O teu corpo vai padecer mais do que
padeceu Cristo Senhor nosso!
Rogou-lhe ainda o moço que pelo amor divino
não o deixasse morrer sem confissão, tornando D. Jaime que ele se desse a Deus,
porque seria assim ou não.
Tirou a Duquesa do guarda-roupa a fim de
que ficasse cada um dos culpados no sítio onde havia de ser justiçado. Aflita,
Leonor clamou:
- Não fiz nada! Não fiz nada!
E aí passou o porteiro João Gomes a ser o
seu guarda. As outras mulheres, tirando as amas dos meninos que ficaram no seu
posto, vieram para a câmara grande a fim de serem testemunhas da punição de um
crime em que elas não deixavam de ser também culpadas, por cumplicidade e
conivência.
Cerrou-se então a janela da câmara e os
guardas que estavam no jardim subiram aos aposentos para serem testemunhas do
que lá se passasse, conforme as determinações do Duque D. Jaime.
António Alcoforado queria por tempo entre a
vida e a morte, a ver se o Duque arrefecia a ira e este, que era profundamente
religioso, não quis privá-lo dos confortos da religião. Ficaram Jorge Lourenço,
o escrivão e tabelião de guarda ao moço.
O Duque mandou então sair o seu escrivão
para o guarda-roupa onde já estava D. Leonor e ficou a sós com o Alcoforado por
um breve intervalo, a fim de o interrogar em segredo sobre o que se tinha
passado… Quis D. Jaime arrancar ao jovem as revelações íntimas sobre o
sucedido. O Duque queria saber desde quando se tinham iniciado as relações
carnais com a Duquesa, para saber se D. Isabel, que teria um ano, era ou não da
linhagem dos Braganças…
O pajem não teve alternativa senão dizer
toda a verdade, como se estivesse perante Deus por breves instantes e pediu
perdão pela traição, confessando o adultério, mas assegurando que Isabel era
filha do Duque!
Chegou logo depois o Padre Lopo Garcia
acompanhado de um criado que o fora chamar. E enquanto este ouvia a confissão
do Alcoforado, foi Jorge Lourenço à Fonte Pequena ver se ainda achava João
Fernandes, que já se tinha escapulido, ao ouvir barulho no Paço.
O Duque passou então para o guarda-roupa e
começou a interrogar a mulher, que negava redondamente a acusação de ter
entrado o pajem noutras ocasiões pela janela. Quando o escrivão regressou,
estavam já atando as mãos ao Alcoforado e o Duque acabava de meter o Padre Lopo
no guarda-roupa a fim de confessar a Duquesa, mandando sair de lá Beatriz Eanes
e Ana Camela e ficando somente o porteiro João Gomes.
Transtornado, tornou D. Jaime para a
câmara, dizendo ao moço fidalgo, que já tinha as mãos atadas, que se
arrependesse dos seus pecados e que pedisse perdão a Deus misericordioso.
Então rogou Alcoforado que lhe tapassem o
rosto para não ver descarregar o cutelo da cozinha que o escravo Diogo, criado
da horta, já tinha na mão para o degolar… Taparam-lhe então a cabeça com um pedaço
de lençol, roubado de uma das camas. E estando presentes os oficiais, os
criados e as três mulheres de serviço na câmara, foi-lhe apartada a cabeça do
corpo num só golpe…
Não quis o nobre Bragança, por ser nobre de
alta estirpe, manchar as suas mãos de sangue, submetendo-se a mais uma
humilhação…
A confissão da Duquesa foi muito mais
demorada, porque estando a paredes meias, ouviu o golpe que decepara a cabeça
do seu cúmplice. Mas D. Jaime, impaciente, vendo já excessivamente prolongada a
confissão, chegou duas ou três vezes à porta do guarda-roupa e disse:
- Basta de confissões! Absolvei-a, Padre!
E quando esta saía para fora, entrou D.
Jaime com uma adaga, para a executar ele mesmo. Ela, porém, reagia dando gritos de aflição, pedindo misericórdia e dizendo que nada tinha feito. Num ato
de fúria, D. Jaime segurou-a pelos cabelos e aplicou-lhe o primeiro golpe, mas
esta, insurgindo-se, conseguiu escapar, caindo ferida a Duquesa por entre a
cama e uns baús que ali se encontravam.
Levantando-a do chão e puxando-a para o
meio da câmara, desfere-lhe cinco cutiladas, sendo quatro pelas costas e a
última, fatal, pelo pescoço… O camareiro Fernão Rodrigues recuou dois ou três
passos, horrorizado pelo que presenciara…
Ao ver a Duquesa caída, já morta, naquela
triste câmara, chamou D. Jaime Jorge Lourenço e Pêro Vaz para que fossem
recolher o cadáver e o colocassem junto do corpo do seu amante…
Eram quatro da manhã quando findou a
tragédia… E houve quem dissesse que os pobres filhos tinham assistido aqueles
crimes macabros…
Faltava ao Duque legalizar aquele
procedimento perante os contemporâneos e vindouros, provando que encontrara a
sua mulher em flagrante delito de adultério e que usara o direito de os matar a
ambos, como então era permitido aos maridos pela Ordenação do Reino. Naquele
tempo, era assim… Podia fazer-se justiça pelas próprias mãos nestes casos…
Mandou logo chamar o Ouvidor bacharel
Gaspar Lopes, o Juiz ordinário João Álvares Mouro e os três escrivães Álvaro
Pacheco, Gonçalo Lourenço e Diogo de Negreiros, para se levantar o auto da
devassa, onde se declara que o Duque os matara pelo facto de os ter encontrado
nos aposentos da Duquesa e considerar que dormiam ambos, praticando adultério.
Nesse documento se declara que Alcoforado
tinha o pescoço cortado e a Duquesa cinco grandes ferimentos no corpo, assim
como é referida a indumentária utilizada por ambos, nomeadamente o barrete
negro utilizado pelo pajem, que estava sobre a cama de Leonor.
Depois de escrito e assinado o auto,
foram-se os representantes da justiça com o Duque a casa da mãe de Alcoforado,
para lhe apreenderem o que o pudesse incriminar… Antes disso, mandou D. Jaime
remover da sala os cadáveres… A Duquesa foi metida num caixão e conduzida sobre
uma mula pelo criado Francisco de Valderrama e outros para o Convento da Luz de
Montes Claros, a fim de ser ali sepultada, longe das vistas do seu marido… Em
relação a Alcoforado, não se sabe onde teve sepultura…
Desembaraçada a câmara da Duquesa, com o
raiar do sol, começou-se a inquirição-devassa a respeito do auto já lavrado e
depuseram as seguintes testemunhas: Pêro Vaz, o moço do guarda-roupa, João
Fernandes, o criado de Manuel Alcoforado, Beatriz Enes, camareira da Duquesa,
Pêro Fernandes, hortelão do Reguengo, Ana Ferreira, moça de câmara da mesma,
Jorge Lourenço, escrivão da câmara do Duque, João Gomes, porteiro da Duquesa e
Ana Camela, dama da Casa da Duquesa.
Estas inquirições duraram todo a jornada…
No dia seguinte, tomaram-se os depoimentos
de Roseimo, mensageiro da Duquesa, Francisca da Silva, ama dos meninos, Fernão
Velho, vedor da Casa da Duquesa e João Rodrigues Pereira, camareiro do Duque,
que escreveu por sua mão os depoimentos.
De seguida, o Duque mandou que se fizesse
uma cópia para ser arquivada na Torre do Tombo.
E assim terminou esta triste história… Pela
lei de então, o Duque de Bragança fizera justiça…
A devassa correu os trâmites legais na
Relação de El-Rei e D. Jaime não foi considerado culpado pelas execuções, ao
abrigo da lei contra os adúlteros, naquele tempo…
Diz a lenda que como penitência e sinal de
arrependimento, metia-se o Duque todos os dias num tanque de água fria, pedindo
igualmente perdão pelos seus pecados junto de um velho poço situado no piso
térreo do Paço do Reguengo… Consta que tinha como pretensão fazer uma
peregrinação a pé a Santiago de Compostela, para redimir-se perante a justiça
divina…
Esta é uma versão dos relatos efetivamente ocorridos no dia 2 de Novembro de 1512 no Paço do Reguengo e foi inspirada na descrição feita pelo Padre Joaquim da Rocha Espanca nas “Memórias de Vila Viçosa”, extensa monografia redigida pelo cronista calipolense nos finais do século XIX
Autoria : Tiago Salgueiro
Jardim do Bosque e janelas do antigo paço do Reguengo, por onde subia o Alcoforado
Convento da Luz de Montes Claros, para onde foi levado o corpo já sem vida da Duquesa D. Leonor
Já conhecia e gostei muitíssimo do relato Gabriela de Bragança.
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