quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Doçaria Conventual Calipolense – Um Mundo a descobrir!


É secular a ligação de Vila Viçosa ao mundo dos doces conventuais. A história que identificamos em Vila Viçosa faz a ligação entre o açúcar que chegava do Brasil e a tradição doceira dos espaços conventuais.
Vila Viçosa tem uma larga tradição e história nesta categoria de receitas que engrandeceram a gastronomia e cuja fama se estendeu além-mar, também pela existência de numerosos conventos. A doçaria conventual tem como ingredientes de eleição o açúcar, as gemas de ovos e a amêndoa.
Estes doces conventuais de açúcar, gemas de ovos e amêndoas sempre estiveram presentes nas refeições que eram servidas nos conventos, mas apenas a partir do século XVI, com a divulgação e a expansão do açúcar, atingiram notoriedade.
Vila Viçosa primava pela excelência dos doces nas festividades oficiais. Foi notável, em 1571, a receção ao legado do Papa Pio V, o Cardeal Alexandrino, assim como o banquete servido a D. Sebastião, em 1573. A Duquesa de Bragança, D. Catarina (esposa do 6º Duque D. João I e filha do infante D. Duarte e de D. Isabel de Bragança), ofereceu em 1581 um faustoso banquete em Vila Viçosa ao Rei de Espanha e de Portugal, Filipe II[1].
A tradição dos doces conventuais tem portanto a possibilidade de se tornar uma imagem de marca de Vila Viçosa. Temos três elementos que me parecem fundamentais, com muito provável origem em Vila Viçosa: a tiborna, o bolo-duque e o sericá.

Da doçaria conventual calipolense tem ainda menção de destaque os “Peixes de Canela”, provenientes do Convento da Esperança e os “fartes” e “bolo celeste” do Convento de Santa Cruz. Este último convento produzia também os doces de pêssego e de ginja em potes de barro. No entanto, a competição das duas claustras era a nível dos rebuçados de ovo e das tibornas.[2]
Em homenagem às tibornas, o poeta calipolense Emídio Amaro, foi dedicado o seguinte soneto:
« Ó minha terra, por menos que fosses
Serias sempre grande em teus doces,
Milagre divinal de mãos patrícias![3]»


O Convento das Chagas foi fundado pelo 4º Duque de Bragança, D. Jaime em 1514. Foi entregue à Ordem de Santa Clara e a vida monástica teve o seu início em 1532, com oito freiras provenientes do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja, que trouxeram consigo o segredo das receitas.
Foi o mosteiro mais rico de Vila Viçosa, na medida em que a maioria das monjas provinha da melhor nobreza do Alentejo, o que permitia a instituição de rendas e tenças de valor muito significativo. A maioria das freiras tinha morada própria.
O Convento tinha capacidade para várias dezenas de monjas, tendo atingido no reinado de D. João V a população de 80 freiras. Foi a última casa monástica de Vila Viçosa, ficando na Casa de Bragança, depois da extinção das Ordens Religiosas em 1834[4].
Talvez devido á riqueza dos seus manjares, D. João III haja feito a mercê, em 1542, de “seis arrobas de açúcar por ano” e a razão tenha sido a mesma utilizada por D. João V, quando promoveu as obras de restauro neste espaço durante o seu reinado[5].
Para além da Tiborna, são provenientes deste convento o Toucinho-do-Céu, o Manjar das Chagas, o Toucinho dos Duques, das Biscoitinhas, as Fatias Duquesa, as Broas das Chagas e as Barrigas de Freira.[6]
Os mosteiros ou conventos de onde se conhecem mais doces foram, com certeza, os habitados pelas freiras da Ordem de Santa Clara, mais conhecidos pelas Clarissas.
O Real Convento de Nossa Senhora da Esperança de Vila Viçosa foi fundado pela Duquesa D. Leonor de Lencastre, que adquiriu o solar de Gonçalo Vaz Pinto em meado do século XVI. A primeira Abadessa Catarina Botelho, veio do Convento de Santa Clara de Elvas[7]. Deste espaço conventual são provenientes a Sopa Dourada do Convento da Esperança, as Tibornas de Ovos do Convento da Esperança, os Agostinhos, as Broas cobertas, os sequilhos de amêndoa e as trouxas-de-ovos[8].
No caso do Convento da Esperança de Vila Viçosa, a tradição manteve-se com outros doces, como as rosquilhas, os rosquetes, a abóbora e a cidra até à morte da última freira – soror Maria Carolina da Piedade, em 1905.
Descreve o Conde de Sabugosa que numa das últimas visitas da Rainha D. Amélia fez ao Convento, onde registou o apontamento do claustro no registo dos “Mes Dessins”, as religiosas quiseram presenteá-la com os bolos, os covilhetes de marmelada, boiões de compota, assim como o sericá[9].
Em todos os conventos calipolenses eram produzidas as cavacas de Vila Viçosa, cujo fabrico terá pertencido originalmente ao Padre Lobo, que as “cosia em folhas de couve para que ficassem frescas durante muito tempo[10]”.
Em relação ao Convento de Santa Cruz, da Ordem de Santo Agostinho (onde se encontra atualmente o Museu de Arte Sacra), são provenientes, o Manjar do rei, o Toucinho amendoado, as Fatias Reais, as Rainhas-Cláudias recheadas, o bolo das Freiras, os Bolos das Visitas e as Talhadas do Céu.[11] Este convento é também do início do século XVI, com as primeiras freiras a serem provenientes do Convento de Santa Mónica em Évora.[12]
No caso do sericá, a receita terá sido trazida por D. Constantino de Bragança, aquando da sua passagem pela India, depois de 1561. É muito provável que esta iguaria tenha sido trazida do Oriente por este ilustre calipolense, nomeadamente por algum dos seus copeiros. É provável que a origem do doce no contexto indiano tenha tido proveniência em Malaca[13]. Elemento da Sereníssima Casa de Bragança, D. Constantino (1528-1575) provavelmente nascido em Vila Viçosa, filho do quarto Duque D. Jaime, desempenhou o cargo de Vice-Rei da Índia, entre 1558 e 1561.
Em relação ao Bolo –Duque, trata-se de uma iguaria de amêndoa  que terá tido origem numa homenagem do chefe doceiro do Paço de Vila Viçosa ao Duque de Bragança D. Teodósio II por ocasião do aniversário, ou por motivo do matrimónio com D. Ana de Velasco y Girón, filha dos Condes de Haro, em 17 de Junho de 1603.
Quais as ideias que podem ser exploradas?
Aliar a História à Gastronomia, vertente equacionada como elemento fundamental nesta iniciativa de promoção de produtos locais, em iniciativas que podem decorrer em espaços conventuais. Explorar, investigar e recuperar antigas receitas conventuais com o “cunho” calipolense ou ligadas à história de Vila Viçosa pode constituir uma inovação
Com esta fundamentação histórica e as especificidades referidas, porque não criar um evento, uma imagem de marca, relativa aos doces conventuais, salientando as particularidades históricas e criar uma parceria com a Pousada D. João IV para a realização de uma mostra nos claustros do convento, com a participação de todos os empresários locais da restauração e hotelaria e cidadãos em geral?
Este evento podia ser associado a uma recriação histórica e, tendo em conta a ligação do Convento das Chagas (e dos restantes conventos) a esta questão, parece-me ser muito interessante avançar para esta possibilidade, sem necessidade de grandes investimentos. Temos os espaços, o saber e a origem de muitas receitas. Entre outras ideias, promover um concurso para o “Melhor Doce Conventual Calipolense”, através de um regulamento que especificasse quais os ingredientes a utilizar, assim como a forma de apresentação pode ser uma forma de angariar participantes e investigadores. O mesmo se poderia aplicar em relação aos licores, de modo a abrir a esfera de ação de participantes e públicos.
A organização de workshops e ateliers para adultos e crianças, com mestres doceiros locais, seria um complemento a esta iniciativa, assim como a edição de um folheto com as descrições e histórias de cada receita em particular. Promover a realização de showcookings sobre doçaria conventual, em parceria com o IEFP.
Apostar num divulgação a larga escala do evento a realizar, através de um vídeo promocional que integrasse os espaços conventuais e a elaboração das antigas receitas, seria outra das formas para dinamizar e atrair públicos. Por outro lado, seria possível dar visibilidade a espaços que normalmente se encontram encerrados (Claustro do Convento das Chagas, Claustro do Convento de Santa Cruz, Claustro dos Capuchos, dependências do Convento da Esperança)
Aliar a História com a Gastronomia podia representar um passo qualitativo no que concerne ao desenvolvimento turístico local. Há um mundo de potencialidades a explorar, em conjugação com espaços históricos que têm condições para acolher este tipo de eventos (Convento das Chagas, Convento da Esperança e Convento de Santa Cruz). Apostar na divulgação e na participação da comunidade, penso que seria uma forte imagem de marca, associada a Vila Viçosa.




[1] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[2] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[3] José Emídio Amaro (1901-1985, foi um investigador da história calipolense, que descreveu carinhosamente Vila Viçosa nos seus poemas e livros
[4] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[5] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[6] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[7] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[8] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[9] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[10] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[11] SARAMAGO, Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[12] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[13] ROSA, João, Alentejo à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49




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