sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Antiga Estrada Nacional 255 – O passado e o futuro




Passou pouco mais de um mês sobre a tragédia de Borba. O tema continua a ser discutido nos meandros políticos, como “arma de arremesso”. De quem é a responsabilidade? O tempo costuma ser bom conselheiro e esperamos todos que a culpa não “morra solteira”.
No entanto, esta estrada tem uma forte componente histórica, que importa realçar. Já durante o período de ocupação romana seria provável a ligação por este caminho à via comercial Olisipo-Salacia-Emerita. Sabemos hoje que uma percentagem considerável de mármore utilizado nas construções romanas de Mérida era proveniente do Anticlinal de Estremoz.

Vamos a alguns factos:

Ao longo de séculos, foi o percurso privilegiado de ligação entre Vila Viçosa e a capital do Reino, assim como um eixo comercial na conexão com Elvas e  Espanha.
Com a carta de foral de 1270 pelo Rei D. Afonso III, é evidenciada a importância económica de Vila Viçosa, devido ao subsolo rico e a presença de vias de comunicação, nomeadamente a estrada de Borba. Numa análise a este documento, concedido a 5 de Junho, efetuada pelo padre Joaquim Espanca nos capítulos XVII a XXI das “Memórias de Vila Viçosa”, é possível avaliar a importância deste percurso.
A referência aos marcos existentes na via para delimitar o antigo termo de Vila Viçosa, provavelmente colocados pelos sesmeiros do Rei D. Afonso III, revela a existência destes sinais na estrada que fazia a ligação a Borba:

Na estrada real de Borba à nossa Vila estava um marco grande, substituído agora por outro pequeno desde que se reformaram os muros da courela de vinha em que se via. Desse grande marco dizia uma anedota dos Calipolenses que os vizinhos de Borba, na ocasião de se organizar o seu concelho, tiveram faculdade para estenderem o seu termo para sueste, isto é para Vila Viçosa, quando um homem pudesse levar às costas aquele marco; e que convidando um negro de forças hercúleas para o levar quanto mais longe pudesse, ele o atirou quase à porta da nossa vila, chamada Porta do Nó[1].

O cronista calipolense refere no entanto que se trata de “uma anedota”, já que o termo de Vila Viçosa já passava por aquele local antes de se organizar o concelho de Borba e o que o dito marco era relativamente moderno (em relação ao século XIX), já que fora ali colocado no ano de 1648, segundo se pode comprovar pelas Vereações do Município de Vila Viçosa.
Este facto não invalida que tivessem existido marcos prévios na “Estrada Real”, como delimitação dos dois concelhos vizinhos.
Também relevante na primeira carta de foral é a instituição da portagem, tributo aduaneiro de entrada e saída pelas portas de Vila Viçosa, pago somente pelos estranhos e nunca pelos vizinhos do concelho[2].

As referências históricas à “Estrada Real” são uma evidência no início do século XVI, aquando da construção do Paço Ducal de Vila Viçosa. Tratava-se da ligação da sede da Casa de Bragança aos restantes territórios sob sua jurisdição. Este era o acesso privilegiado ao solar brigantino. Ainda hoje, quem utiliza a Rua de D. Jaime, que não é mais que o prolongamento da estrada de Borba, fica impressionado com a visão do Terreiro.
Em 1537, é provavelmente por aqui que passa o rei D. João III, para casar o seu filho D. Duarte com D. Isabel de Bragança, filha do quarto Duque D. Jaime, numa cerimónia organizada com pompa e circunstância por D. Teodósio I.


Também o Cardeal Alexandrino, legado do Papa Pio V, passou pela “Estrada Real”. Seguia em direção a Lisboa, vindo de Badajoz, a 18 de Novembro de 1571, como nos informa uma carta de um elemento do seu séquito, enviada a Jerónimo Bonelli, irmão do cardeal, datada de 6 de Dezembro de 1572.
A entrada em Portugal fez-se por Elvas, com uma cavalgada de mais de 300 cavalos, encabeçada por D. Constantino de Bragança, enviado por D. Sebastião para receber em grande estilo o legado papal, com outras individualidades, nomeadamente D. Manuel, senhor de Monsaraz e o 6º Duque de Bragança, D. João.
De Elvas passou a comitiva a Vila Viçosa, a quem o anónimo relator prefere chamar “Vila Deliciosa”, pela sua beleza e fertilidade. É destacada na crónica a magnificência do Paço Ducal, cuja praça diz mesmo ser pouco inferior à de São Pedro, assim com as cavalgadas e os banquetes e festas com que foi sendo agraciado o Cardeal.

Aqui assistiram à missa na Capela. Mais tarde, o Cardeal encontrou-se com a infanta D. Isabel (viúva do infante D. Duarte) e com a sua filha, D. Catarina, esposa do 6º Duque de Bragança, D. João. Seguiram para Estremoz e o legado pernoitou na casa do donatário, D. Constantino de Bragança.

Em 1584, uma Embaixada de nobres japoneses, vindos de Nagasáqui e acompanhados pelos Jesuítas Sebastião de Morais e Luís Álvares, passa por Vila Viçosa com direção a Roma. Chegados a Évora, onde foram recebidos pelo Arcebispo da cidade, D. Teotónio de Bragança, são encaminhados para o solar brigantino.
Ao entrarem pelo Terreiro do Paço, vindos precisamente por este caminho, são confrontados com o edifício, cuja fachada estava recoberta de “mui fino e lustroso mármore”, sendo a mesma frontaria iluminada por 55 janelas, das quais 23 estavam protegidas por grades de ferro[3].
Depois de dias de fausto no Paço, partem para Madrid, ao encontro de Filipe II, pelos “campos vinhateiros de Borba”, na direção de Elvas, entrando depois em território espanhol, por Badajoz.

Em 1603, realiza-se a união de D. Teodósio II, sétimo Duque de Bragança, com a filha do Condestável de Castela e Leão, Duque de Frias e Conde de Haro, D. Ana de Velasco y Girón, mãe do futuro D. João IV, primeiro rei da dinastia brigantina.
Quando o cortejo entrou em Vila Viçosa, vindo de Espanha, foi recebido e aplaudido não apenas pelos Calipolenses, mas por muita outra gente que acorreu de diversos lugares para assistir à festa. Enquanto os noivos eram saudados por uma salva de tiros disparados do Castelo, o Terreiro do Paço enchia-se de danças[4].

Foi da “Janela de Lisboa”, virada para a estrada de Borba, que provavelmente D. Luísa de Gusmão se despediu de D. João, o oitavo dos Braganças, aclamado Rei de Portugal no dia 1 de Dezembro de 1640. Também aqui diz a tradição que esperou pelas notícias do correio expresso de Lisboa com as novas da Revolução. Por este caminho, partirão mais tarde 300 carruagens com todo o conteúdo artístico do Paço Ducal, para o Paço da Ribeira.

Em 1648, na obra “O Valeroso Lucideno”, publicada pelo frade paulista calipolense Frei Manuel Calado, é feita a seguinte descrição:

e no fim deste jardim estão três janelas, duas ordinárias e uma rasgada com o seu balcão, por as quais entra a luz a uma casa de prazer, aonde Sua Alteza a Senhora D. Catarina[5] se vinha sentar com as suas damas algumas tardes de verão, para se entreter com ver passar muita gente que ordinariamente entra naquela rua, quando vem de Borba, Estremoz e outras vilas circunvizinhas, e a muita também que sai da vila a tomar refresco nas igrejas de São Bento e São Jerónimo”.

No dia 9 de Junho de 1665, a vanguarda do exército do Marquês de Caracena chega à Porta da Vila (Porta dos Nós), pelo caminho de Borba, onde se dá o primeiro tiroteio com os arcabuzeiros das forças portuguesas da guarnição do Castelo, que ali tinham ido esperar o inimigo. Principiou assim o assédio que durou até dia 17, dia da Batalha de Montes Claros.
Em 1683, António de Oliveira Cadornega descreveu assim este episódio:

Estando dominando em um alto o caminho e estrada que entra naquela Vila pela Porta tão nomeada do Nó, por sua sinificação, que queria dizer “despois de vós, nós”, onde o forte da envocação deste glorioso e antiguíssimo Patriarca São bento experimentou o exército castelhano e seu general Caracena prencipio de sua ruína, vindo buscar aquela entrada e sítio como quem vinha de Borba, não se lhe dando de a arriscar e perder gente, e se lhe morteficou tão valeroso orgulho com mortes de muitos dos seus soldados, investindo à queima-roupa aquelas trincheiras da entrada da Porta do Nó[6].

Mais tarde, no dia 19 de Junho de 1808 e na sequência do saque verificado nas igrejas de Vila Viçosa e de maltratos infligidos a um menino junto da “Estacada” pelos soldados franceses, o povo calipolense insurgiu-se e atacou a guarnição de Napoleão que se encontrava no Castelo. O Franceses tinham levado, só do Convento dos Agostinhos, 28 arrobas e 10 arratéis de prata.
Na sequência desta revolta e por ter tido conhecimento dos factos através de um soldado francês que conseguiu fugir, o General D’Avril, comandante das tropas francesas que se encontravam em Estremoz, marcha sobre Vila Viçosa, pelo caminho de Borba, para esmagar a rebelião, com 350 homens de infantaria, 100 cavalos e duas peças de artilharia.
Infante de Lacerda, sargento-mor reformado, levou para a Porta do Nós 38 espingardeiros, que se esconderam nos muros e nos telhados da “Ilha” (a norte do Paço Ducal e junto da estrada de Borba), com ordem para dispararem sobre os soldados franceses do General D’Avril, que tinha vindo para ajudar a guarnição francesa do Castelo.
Trinta e seis soldados franceses acabaram por perecer nas escaramuças.
Contudo, devido ao número desigual de forças entre franceses e o povo calipolense, a insurreição foi controlada pelos invasores, que acabaram por entrar pela Porta dos Nós (a antiga Porta da Vila).

No ano de 1728, no âmbito da célebre “Troca das Princesas” realizada no Caia, quando foi ajustado o casamento do príncipe D. José com D. Maria Vitória, filha de Filipe V de Espanha e da princesa portuguesa Maria Bárbara com Fernando VI de Espanha, a Câmara de Vila Viçosa reparou as duas estradas de Bencatel e Borba a fim de poderem circular mais rapidamente os coches da Família Real[7].

Em 1859, com a conclusão da estrada real de macadam por Borba, Estremoz, Vimieiro, Arraiolos e Montemor até Vendas Novas, passaram os almocreves a usar carros mais rápidos e resistentes, com ferragem inteiriça nas rodas e ferro nos eixos, carregando e descarregando mercadoria na estação do caminho-de-ferro de Vendas Novas, inaugurada em 1853[8]. Fica mais uma vez evidenciada a relevância económica desta ligação.

Em 1860, nova referência à “Estrada Real”, quando a Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa constata uma irregularidade no transporte de doentes que iam de Borba para Elvas e que passavam por Vila Viçosa. Para os membros da comissão administrativa da instituição calipolense era um absurdo a utilização do caminho que dava acesso a Vila Viçosa, uma vez que os doentes deveriam ser mandados diretamente por Juromenha. No entanto, os doentes eram remetidos para Vila Viçosa, devido à extinção da Misericórdia de Juromenha, tendo os seus bens sido entregues ao administrador do concelho do Alandroal[9].

Este facto prova a variada utilização da estrada para diferentes fins, entre os quais o transporte de enfermos.
No final do século XIX, outro cronista calipolense, o ilustre Padre Joaquim Espanca, considera a “estrada de Borba” uma das mais importantes, refere como estrada principal. Em 1868, o governo central mandou classificar as estradas em três ordens, sendo pertencentes à primeira as estradas reais ou em direção a Lisboa; a 2ª às distritais que ligam os concelhos com as capitais de distrito; e à 3ª as municipais que devem ligar as aldeias com as cabeças de concelho. Todas estas estradas, feitas ou por fazer, foram numeradas para sua melhor designação e formaram-se mapas do Reino com o trajeto das mesmas estradas[10]. Diz-nos o Padre Espanca que a “estrada de Borba para Vila Viçosa, que é real, já estava feita”.

Esta via só perderá alguma importância com a criação da linha de caminhos-de-ferro e da Estação de Vila Viçosa, inaugurada em 1905. A ligação a Lisboa torna-se mais célere, sendo possível fazer o trajeto num único dia.

A partir de meados do século XX, a Estrada Nacional 255 passa a assumir uma importância muito relevante do ponto de vista económico, já que constitui o acesso privilegiado às pedreiras e unidades de transformação do mármore, principal atividade socioeconómica dos concelhos de Borba e Vila Viçosa.
Passa a estrada municipal em 2005, data em que é inaugurada a “variante” que liga as duas sedes de concelho. Contudo, antes do desabamento, continuava a  utilizada com muita frequência, quer por borbenses, quer por calipolenses.

Tendo em conta o que foi demonstrado, é óbvia a importância histórica da antiga Estrada Nacional 255.

Fará sentido o seu encerramento definitivo?

 Haverá possibilidades de reabilitação da via?

Do ponto de vista técnico, isso será possível?

Em termos de investimento, qual será o encargo?

A questão da segurança ficará salvaguardada?

Será necessário entaipar as pedreiras que não estão a laborar, nas zonas mais críticas do percurso?

Qual o impacto económico para as empresas de mármore da região e superfícies comerciais de ambas as localidades?

A “variante” ficará a ser a única via de comunicação entre Borba e Vila Viçosa?

O ramal ferroviário de Vila Viçosa poderá ser reativado?

Do ponto de vista turístico, haverá alguma possibilidade das pedreiras inativas poderem ser úteis?

Perderá o Paço Ducal de Vila Viçosa alguma percentagem de visitantes, na sequência do eventual encerramento da antiga Estrada 255, tendo em conta que este era o acesso privilegiado ao monumento?

São demasiadas perguntas para poucas respostas. É de lamentar que esta tragédia as tenha originado. Talvez seja ainda prematuro pensar sobre este tema. Será necessário e inevitável repensar estratégias e soluções, de modo a que mais situações como as que vivemos não voltem a repetir-se. É agora importante planear o futuro, através de uma profunda reflexão, sem esquecer a importância histórica, económica e social deste pequeno troço entre ambas as localidades.




[1] PESTANA, Manuel Inácio, Forais de Vila Viçosa, Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1993 (SC 69672 V.).
[2] Idem.
[3] ESPANCA, Túlio, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[4] CALADO, Frei Manuel, Valeroso Lucideno, Of. Domingos Carneiro, Lisboa, 1648 (HG 36883 V.); (RES. 1249 V./ 1313 V.).
[5] Filha do Infante D. Duarte e de D. Isabel de Bragança, esposa do 6º Duque de Bragança D. João I e mãe do sétimo Duque, D. Teodósio II.
[6] CARDONEGA, António de Oliveira, Descrição de Vila Viçosa[6], introdução, selecção de texto e notas de Heitor Gomes Teixeira, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1982.
[7] ESPANCA, Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa, 36 cads., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.
[8] MILHEIRO, Nuno, O municipalismo e o concelho de Vila Viçosa no século XIX, Revista de Cultura Callipole nº 10, Cãmara Municipal de Vila Viçosa, 2002.
[9]  ARAÚJO, Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Vila Viçosa : de finais do Antigo Regime à República”. Braga : Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, 2010.
[10] ESPANCA, Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa, 36 cads., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.



Bibliografia consultada:


ARAÚJO, Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Vila Viçosa : de finais do Antigo Regime à República”. Braga : Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, 2010.
CADORNEGA, António de Oliveira, Descrição de Vila Viçosa[1], introdução, selecção de texto e notas de Heitor Gomes Teixeira, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1982.
CALADO, Frei Manuel, Valeroso Lucideno, Of. Domingos Carneiro, Lisboa, 1648 (HG 36883 V.); (RES. 1249 V./ 1313 V.).
ESPANCA, Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa, 36 cads., Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1983 – 1992.
ESPANCA, TúlioInventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
MILHEIRO, Nuno, O municipalismo e o concelho de Vila Viçosa no século XIX, Revista de Cultura Callipole nº 10, Câmara Municipal de Vila Viçosa, 2002.
PESTANA, Manuel InácioForais de Vila Viçosa, Câmara Municipal de Vila Viçosa, Vila Viçosa, 1993 (SC 69672 V.).
VELOSO, Queirós, D. Sebastião 1554-1578, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1935.





Início da Estrada Real, junto do Paço Ducal de Vila Viçosa, 1940, autoria Porfírio Pardal Monteiro - direitos de imagem - Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian


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