quinta-feira, 22 de junho de 2017

A brilhante corte humanista da Casa de Bragança no Paço de Vila Viçosa

É recorrente falar sobre a importância de Vila Viçosa no século XVI. As opiniões dos especialistas convergem em classificar a localidade como um eixo de considerável importância a nível das artes, das ciências e das letras. Os factos históricos apontam para excecional concentração de personalidades e de saberes que irradiavam à luz da corte brigantina.
O interesse dos Duques de Bragança, logo no final do século XV, pelas correntes humanistas e pelos estudos literários e científicos teve em Vila Viçosa o seu foco principal de desenvolvimento. O mecenatismo dos sucessivos duques foi uma constante que originou a confluência de mestres, cientistas, filósofos, humanistas, escritores, sábios e poetas para esta terra no coração do Alentejo.
Hoje, à distância, pode parecer quase inconcebível que, num período em que as comunicações tinham um tempo que não é o do século XXI, Vila Viçosa assumisse de facto tal protagonismo no contexto europeu.
Para contextualizar de melhor forma a evolução das correntes humanistas no Paço Ducal de Vila Viçosa, é necessário recuar até ao ano de 1483, quando ocorre a execução do terceiro Duque de Bragança, D. Fernando II, por ordem expressa do rei D. João II. Este facto ocorre no âmbito de uma política de centralização do poder régio e a Casa de Bragança surgia, claramente, como uma ameaça à Coroa. O desmembramento da casa ducal brigantina foi uma realidade, que levou o poderoso ducado quase à extinção…
O filho primogénito de D. Fernando, D, Jaime, então com quatro anos de idade, é conduzido para Espanha, juntamente com o seu irmão D. Dinis. Levados pelo tio, D. Álvaro de Bragança, (irmão mais novo de D. Fernando II), são acolhidos pelos Reis Católicos, Isabel e Fernando.
É precisamente na corte espanhola que D. Jaime vai receber a sua primeira formação literária. Teve, no estrangeiro, o privilégio de figurar, juntamente com outros jovens da alta aristocracia espanhola, entre os primeiros discípulos do humanista italiano Pedro Mártir de Anghiera, nas aulas de retórica.
Os primeiros anos da formação de D. Jaime terão uma influência determinante no seu carácter e na forma como tentou implementar princípios e normas do Renascimento italiano em Vila Viçosa. O gosto pelo humanismo criara raízes na Casa de Bragança, a partir de então.
No seu regresso a Portugal, D. Dinis (irmão mais novo de D. Jaime), receberá, em Lisboa, no Paço de D. Jaime, lições de outro humanista italiano, Cataldo Parísio, que em 1486 trocara a Universidade de Bolonha pela corte do rei de Portugal.
O ensino deste mestre não se restringiu a D. Dinis, já que foi ele também o responsável pela educação dos filhos do quarto Duque de Bragança, D, Jaime. De facto, D. Jaime (com o mesmo nome do progenitor), D. Fulgêncio e D. Teotónio de Bragança (futuro Arcebispo de Évora) recebem a primeira formação com base nas novas metodologias de ensino, nos estudos feitos previamente em Vila Viçosa.
Seguem então para Coimbra, cuja Universidade estava, em meados do século XVI, em pleno florescimento e expansão. D. João III chamara à Academia coimbrã muitos dos numerosos bolseiros que inteligentemente mantinha em Paris, juntamente com outros alunos formados em Salamanca e Lovaina.
O Rei “Piedoso” recrutara e chamara a Coimbra alguns dos melhores mestres e professores espanhóis, franceses, italianos e espanhóis, que credibilizaram ainda mais o ensino universitário da cidade à beira do Mondego.
No que concerne especificamente a Vila Viçosa e depois do regresso de D. Jaime em 1496, era tempo de reerguer a Casa de Bragança. O Duque recuperou todos os seus direitos, passou a ter o privilégio de conferir graus de nobreza, foi ordenado herdeiro presuntivo do trono por D. Manuel e a Casa de Bragança renascia, assumindo-se como a mais importante casa do reino, depois da casa real.
O Paço Ducal de Vila Viçosa é a sede de uma verdadeira corte, o que explica também, em certo sentido, a expansão urbana quinhentista da localidade. Este facto atraiu muitas famílias importantes do Reino, que integravam o núcleo mais próximo da Casa de Bragança.
Vila Viçosa não foi, durante este período e pelo menos até 1640, um lugar perdido na vasta planície alentejana. Era, sem dúvida, um centro ativo, onde acudiam, com frequência, os correios reais e os do embaixador de Carlos V ou da mais alta nobreza espanhola, com as novas sobre os últimos acontecimentos políticos, sociais ou diplomáticos.
Os Duques, nomeadamente D. Jaime e D. Teodósio I, mantiveram em diversas cidades da Europa os seus agentes, sobretudo em Espanha e em Itália, que lhes enviavam regularmente os seus relatórios. Estes “espiões” permitiam o acesso da casa ducal a informações privilegiadas, obtidas com base em operações de grande secretismo.
Para além da reabilitação económica, social e política, o quarto Duque tinha também como prioridade a organização de estudos regulares no recém-criado Paço Ducal (cuja construção se inicia em 1501), não só para a sua descendência, mas também para os moços fidalgos da corte.
Até então, a formação dos Duques e dos seus irmãos tinha sido feita fora do contexto calipolense: em Espanha, por motivo do exílio, em França e na Bélgica, com o recomeço em Lisboa, antes de Vila Viçosa.
É hoje quase um dado adquirido que as disciplinas de trivium (lógica, gramática, retórica) foram ministradas dentro das paredes do Paço Ducal de Vila Viçosa, logo no início do século XVI. Em relação aos conteúdos do quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), só terão sido aplicados mais tarde, em meados de 1530.
O que parece indubitável é que na primeira metade do século XVI, os Duques de Bragança chamaram a si alguns dos mais importantes professores portugueses e estrangeiros.
Um dos mais notáveis foi sem dúvida Diogo de Sigeu. Nascido em França mas vivendo em Toledo no início de 1522, Diogo de Sigeu entra em Portugal no séquito de Maria Pacheco (nobre castelhana, esposa do general Juan de Padilla), aquando do seu exílio no nosso país.
Em 1530, é admitido ao serviço da Casa de Bragança, onde irá permanecer durante 20 anos. Foi este mestre, formado pela Universidade de Alcalá de Henares, quem preparou em Vila Viçosa, a D. Jaime (filho), D. Fulgêncio e D. Teotónio antes dos estudos na Universidade de Coimbra, do mesmo modo que completou a formação literária de D. Teodósio, iniciada na corte de D. Manuel I com Cataldo Parísio.
Sigeu deixava Vila Viçosa vinte anos mais tarde para ingressar na corte de D. João III, como preceptor dos jovens fidalgos. Foi substituído por outro estrangeiro, o sevilhano Juan Fernandez, antigo professor em Alcalá de Henares e Salamanca, no Colégio de Santa Cruz de Coimbra e catedrático de Latim na Universidade da mesma cidade.
Permaneceu em Vila Viçosa durante cerca de trinta anos. O ensino das Humanidades no Paço do Reguengo não terá sofrido interrupções ao longo de todo o século XVI e foram diversos os mestres que aqui lecionaram, nomeadamente Fernão Cardoso, Fernão Soares, Gaspar Colaço e António de Castro.
Paralelamente ao ensino das disciplinas clássicas, ocorreu também neste período em Vila Viçosa o ensino das matérias científicas do quadrivium. António Maldonado Ontiveros dirigiu uma escola de astronomia no Paço. Chegado a Portugal em 1526, o médico e astrólogo espanhol iria fixar-se para sempre em Vila Viçosa, por mais de quarenta anos, prestando serviço não somente aos Duques, mas também a D. João III.
Numa corte constituída por mais de 350 pessoas, sobressaíram nomes como os de Martim Afonso de Sousa (que lançaria as bases da colonização do Brasil), Diogo Mendes de Vasconcelos, Gonçalo Pinheiro (futuro Bispo de Viseu) e Manuel da Costa (professor das Universidades de Coimbra e de Salamanca, cuja ascendência era originária precisamente de Vila Viçosa).
Aqui estavam estabelecidos médicos e juristas ao serviço do Paço, os mestres que tinham sob sua responsabilidade a formação dos Duques e dos jovens nobres da Casa de Bragança e os homens das letras protegidos pelo círculo brigantino: Jerónimo Corte –Real, António de Sousa de Abreu, o poeta Pedro de Andrade Caminha, Fernão Cardoso, ou ainda, Afonso Vaz de Caminha, um dos fidalgos mais eruditos do seu tempo.
Em Vila Viçosa estava em 1571 a jovem Públia Hortênsia de Castro, então com 22 anos, famosa em letras, que não foi esquecida na relação da viagem do Cardeal Alexandrino.
Para além disso, verificava-se também uma intensa e dinâmica atividade científica. Os estudos de cosmografia foram tema predileto dos Duques. Aqui existiu, sem dúvida, um observatório astronómico e António Rodrigues, grande mestre da conceção de instrumentos astronómicos e de navegação, tinha oficina na terra. O próprio D. Jaime era entendido em artes náuticas e D. Teodósio dedicado de forma peculiar às questões de cosmografia e astronomia.
O que parece claro é que o Paço Ducal de Vila Viçosa viveu o Renascimento e o gosto pelo Humanismo em múltiplas vertentes. Essa marca ainda hoje é visível. Os Duques, amantes da música, foram os impulsionadores da Capela e D. Teodósio I, dado às artes e antiguidades, enriquecia o Paço com pinturas, esculturas, tapeçarias e mobiliário, provenientes de todas as partes do Mundo.
 Mandava também recolher em Vila Viçosa monumentos epigráficos, alguns deles provenientes do santuário pré-românico do Endovélico, em São Miguel da Mota (Alandroal). A morte surpreendeu-o quando estava a lançar as bases para a Universidade que quis ver instalada no Convento de Santo Agostinho, mesmo em frente do Paço Ducal. A livraria que constituiu era uma das mais importantes do espaço europeu, quer em quantidade, quer em qualidade.
É de lamentar, de certo modo, que esta dinâmica cultural tenha vindo a perder fulgor ao longo dos séculos. É certo que a História não é estática e o passar do tempo trouxe consigo muitas mudanças que eram inevitáveis. Hoje, vivemos um pouco na sombra do passado.
Permanece essa memória, que temos a obrigação de preservar. Talvez para os presentes seja difícil entender que no século XVI Vila Viçosa tivesse um considerável protagonismo a vários níveis, até como linha avançada da inovação e da ciência e como exemplo erudito do pensamento humanista em pleno Alentejo.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
MATOS, Luís de, A Corte Literária dos Duques de Bragança no Renascimento, Fundação da Casa de Bragança, 1956.





4 comentários:

  1. Finalmente! A divulgação da história e do significado dos monumentos da Vila sobe de nível. Parabéns ao autor. Só um esclarecimento. O Terreiro do Paço é um espaço magnífico. Mas esta ala do palácio , hoje a mais visível e emblemática, só foi concluída no sec. XVII, quando o Renascimento já tinha pasado a Contrareforma (Pode ve-se em Memórias de Vila Viçosa , de Padre J J Espanca, uma referência à data em que foi colocado o revestimento em mármore desta fachada 1639 -- mas escrevo com base na memória) Uma imagem com o Convento das Chagas , ou da igreja dos Agostinhos, evocaria melhor a época renascimental. O palácio de D. Jaime (que estria à esquerda do que se vê) tem sido posto em evidência em estudos arquitectónicos a partir de medições com laser. A sua entrada seria pela Porta dos Nós. Mas, infelzmente, a grande obra iniciada por D Jaime e hoje ignorada, deprezada e escondida, é a fortaleza artilheira.
    Quando os calipolenses se guindarem ao nível desta publicação, voltará a haver esperança. Abaixo a ignorância cultivada!
    #VilaViçosaNãoseRende.#VilaViçosa #Monumentosnacionais #Património #MemóriaSocial #DJaime

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  2. Caro amigo! Muito obrigado! Existem muitas dúvidas relativamente às fases de construção do Paço. Parece claro e objectivo para alguns especialistas que a 2ª fase de construção do ducado de D. Teodósio I (depois dos dois ciclos construtivos do seu antecessor, D. Jaime), incluiria já, até ao Convento das Chagas, o piso térreo e o andar nobre. Portanto, entre 1537 e 1563, os dois primeiros pisos estariam já concluídos, com a nítida influência renascentista na fachada de mármore. Há alguns especialistas que defendem que terá sido Nicolau de Frias, já no final do século XVI, durante o ducado de D. Teodósio II, o mentor do 3º piso. Mas as dúvidas subsistem Esperemos que em breve haja mais novidades sobre este tema!

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  3. José Pombeiro Filipe23 de junho de 2017 às 08:22

    O nível continua a subir. Mais um andar. Mas as Memórias do Padre Espanca (Se bem me lembro, ele cita o Cadornega), temos que as rever. Quanto à diferença entre o espírito do Renascimento e o da Contrareforma ela pode ser importante para compreender a história de Vila Viçosa, no que diz respeito aos edifícios, mas também relativamente aos costumes e ao modo como ficaram na memória social. Tive notícia de uma conferência sobre Dona Leonor e D. Jaime, mas infelizmente não tenho podido ir a V V. Seria possível aceder ao texto dessa conferência. Como é que pensa dinamizar este blog. (Afinal faltava um blog ... Será que dava para envolver a leitura deste blog com música de Públia ou do Cancioneiro de Vila Viçosa.
    O Tiago, com esta publicação, deu-me tal alento que até vou a V V este fim de semana. Daria para o tal jantar, ou almoço?)

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  4. José Pombeiro Filipe23 de junho de 2017 às 17:12

    O nível continua a subir. Tiago Passão Salgueiro, passando por cima de alguma pedanteriia que se poderia ver no termo esclarecimento, respondeu: "Parece claro e objectivo para alguns especialistas que a 2ª fase de construção do ducado de D. Teodósio I (depois dos dois ciclos construtivos do seu antecessor, D. Jaime), incluiria já, até ao Convento das Chagas, o piso térreo e o andar nobre. Portanto, entre 1537 e 1563, os dois primeiros pisos estariam já concluídos [....]
    Não tenho, nessa matéria, mais dados do que os que li em "Memórias ..." de JJ Espanca e a observção atenta mas não triinada, nem informada, de desenhos e plantas da época. Tomo por boa esta conclusão. Já ém relação ao que TPS escereve de seguida, mantenho as minhas dúvidas e objecções. Tiago termina a frase escrevendo: " com a nítida influência renascentista na fachada de mármore. Sobre o que possa ser considerado renascimento em Portufgal e em V V há toda uma discussão a fazer. Para mim, aquela fachada em mármore é maneirista ...(Mas para o sec XVI em Itália, já se fala em maneirismo.) Se J J Espanca tem razão ao pensar que a colocação do marmore terminou em 1639, faria todo o sentido que o estilo maneirista (renascimental para alguns) das três ordens clássicas desde o dórico do 1º piso, ao Jónico do 2º e ao coríntico do terceiro, ser o resultado de uma concepção unitária. Este estilo maneirista unitário, caracterizado pela sucessão das três ordens, não podia estar presente nas fases de construção em que só havia dois andares. A considerar?

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